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Jornal Brasileiro de Psiquiatria - Transtorno de oposição e desafio e transtorno de conduta: os desfechos no TDAH em adultos
Print version ISSN 0047-2085
J. bras. psiquiatr. vol.56 suppl.1 Rio de Janeiro 2007
doi: 10.1590/S0047-20852007000500008
ARTIGO DE ATUALIZAÇÃO
Oppositional defiant disorder and conduct disorder: their outcomes into adulthood
Eugenio Horacio Grevet; Carlos Alberto Iglesias Salgado; Gregory Zeni; Paulo Belmonte-de-Abreu
Hospital de Clínicas de Porto Alegre da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
RESUMO
Os autores examinam a influência dos transtornos de oposição e desafio (TOD), de conduta (TC) e de personalidade anti-social (TPAS) ao longo da vida do indivíduo com TDAH. Os principais achados mostram que o TDAH é modulado por essas comorbidades e que seu prognóstico é modificado dependendo da presença ou não desses transtornos. O transtorno de oposição e desafio intensificaria as características de impulsividade e isolacionismo do TDAH, porém não acarretaria em um aumento na incidência de TPAS na vida adulta. Já o TC associado ao TDAH implica um aumento significativo na impulsividade e agressividade, estando associado significativamente a TPAS e um pior prognóstico. A diferenciação entre os diferentes transtornos e seu correto diagnóstico é essencial para o tratamento adequado do TDAH. Futuros estudos precisam determinar se o tratamento do TDAH produziria uma mudança significativa no prognóstico desse grupo de pacientes.
Palavras-chaves: TDAH, adultos, transtorno de oposição e desafio, transtorno de conduta, transtorno de personalidade anti-social.
ABSTRACT
The authors examine the influence of oppositional defiant disorder (ODD), conduct disorder (CD) and anti-social personality disorder (ASPD) on attention deficit/hyperactivity disorder (ADHD) across life span. The findings showed that ADHD is modulated by this comorbidities and ADHD prognosis is modified depending on the presence or the absence of those disorders. ODD intensifies ADHD impulsivity and isolationism, but does not lead to an increase in the prevalence of ASPD in adulthood. Otherwise, CD associated with ADHD increases significantly the levels of impulsivity and aggressiveness, is associated with ASPD and a poor outcome. The appropriate approach to ADHD must be based on the correct diagnosis of different comorbidities to predict the outcomes. Further studies are needed to investigate if the treatment of ADHD can produce a significant improvement on the outcomes of this group of patients.
Key-words: ADHD, adult, oppositional defiant disorder, conduct disorder, anti-social personality disorder.
INTRODUÇÃO
Pacientes com transtorno de déficit de atenção/hiperatividade (TDAH) apresentam uma prevalência maior de comorbidades do que pessoas sem TDAH. O percentual pode chegar a 70% dos pacientes referidos a um serviço clínico, e o padrão é observado tanto em adultos como em crianças (Biederman, 2004). Os diagnósticos mais comumente associados são o transtorno desafiante de oposição (TOD) (60% das crianças e 40% dos adultos), o transtorno de conduta (TC) (14% das crianças e 20% dos adultos) (Biederman et al., 1999) e o transtorno de personalidade anti-social (TPAS) (8% dos adultos) (Grevet et al., 2006).
Parece que esses transtornos comórbidos podem produzir notáveis alterações no tratamento e prognóstico dos pacientes com TDAH. Há consenso na literatura de que um paciente com diagnóstico de TDAH apresentará um prejuízo acadêmico, familiar e laboral quando comparado com indivíduos sem TDAH (Biederman, 2004).
No entanto, ainda é motivo de controvérsia o papel das comorbidades no prognóstico e tratamento de portadores de TDAH, principalmente no que se refere aos diagnósticos de transtornos de externalização. Discute-se a possibilidade de existir uma interação desfavorável que envolva TDAH, TOD, TC e TPAS em um contínuo de psicopatologia ao longo da vida do indivíduo (Manuzza e Klein, 2000).
Neste artigo de atualização, será abordada a persistência do TOD, do TC e do TPAS na vida adulta de indivíduos com TDAH e a relevância clínica de se avaliar tais transtornos em conjunto.
Transtorno de oposição e desafio
Apesar de este diagnóstico ter sido proposto desde 1966 (Stainer, 2000), o transtorno de oposição e desafio faz parte da nosologia psiquiátrica americana desde o DSM-III (APA, 1980). Esse transtorno era considerado por muitos um precursor subsindrômico na infância de quadros de conduta mais graves na vida adulta (APA, 1980; APA, 1987). Isso levou a comunidade médica a acreditar que muitos pacientes com TDAH e TOD (em torno de 60% das crianças com TDAH) apresentariam uma chance maior de virem a ter transtorno de conduta na vida adulta. Contudo, estudos de seguimentos demonstraram que não há uma ligação mais estreita entre os diagnósticos de TOD e de transtornos de conduta mais graves. Isso foi ratificado no DSM-IV (APA, 1995), que somente admite o diagnóstico de TOD se não houver um diagnóstico formal de TC ou TPAS.
O DSM-IV (APA, 1995) caracteriza o transtorno de oposição e desafio como um transtorno comportamental que apresenta um padrão recorrente de comportamento negativista, desafiante, desobediente, principalmente com figuras de autoridades que levam a um prejuízo na vida acadêmica, social e familiar do paciente. Para o diagnóstico de TOD são necessários pelo menos quatro dos seguintes sintomas: 1) encoleriza-se freqüentemente; 2) discute com adultos ou figuras de autoridade; 3) costuma desafiar as regras dos adultos; 4) faz coisas deliberadamente para aborrecer a terceiros; 5) culpa os outros pelos seus próprios erros; 6) se sente ofendido com facilidade; 7) tem respostas coléricas quando contrariado; e 8) é rancoroso e vingativo quando desafiado ou contrariado.
Esses sintomas devem se apresentar como um padrão persistente em múltiplos ambientes e estar presentes há pelo menos seis meses. Para se fazer o diagnóstico de TOD, o paciente não pode apresentar concomitantemente um transtorno psicótico ou um transtorno afetivo. Também, o paciente não pode preencher os critérios para transtorno de conduta (menores de 18 anos) ou personalidade anti-social (em maiores de 18 anos).
Da mesma maneira que ocorre com o TDAH e o autismo, para o diagnóstico de TOD em adultos, utilizam-se os critérios diagnósticos que foram definidos para crianças e adolescentes. A utilização ipsis litteris dos critérios acima mencionados em adultos não seria possível. Faz-se necessário contextualizar os critérios para vida do paciente (Grevet et al., 2005). Por exemplo, no sintoma número 3, em vez de desafiar uma figura paterna, o paciente adulto costuma ter problemas com os chefes e figuras de poder. Feitas essas devidas contextualizações, o diagnóstico é regido pelos mesmos critérios.
Os primeiros estudos de seguimento em pacientes com TDAH foram realizados no Canadá e nos Estados Unidos com amostras diagnosticadas pelo DSM-II (APA, 1968). Elas não incluíam o diagnóstico de TOD, não possibilitando uma noção de seu prognóstico. No seguimento de crianças canadenses, Weiss et al. (1979) apresentam uma amostra de crianças acompanhadas até a vida adulta na qual poucas permaneceram com o diagnóstico de transtorno hipercinético e nenhuma apresentou como desfecho transtorno de conduta. Nos Estados Unidos, Manuzza e Klein (2000) acompanharam até o início da vida adulta crianças diagnosticadas pelo DSM-II também com transtorno hipercinético. Aquelas que apresentavam os sintomas mais pervasivos de TDAH na época do diagnóstico foram as que apresentaram uma incidência maior de transtorno de personalidade anti-social (29%) na vida adulta.
Biederman et al. (1996 e 2001) apresentaram os resultados de um seguimento de quatro anos de 140 crianças e adolescentes com TDAH e 120 controles. Os resultados demonstraram que pacientes com TDAH e TOD não evoluíram para transtorno de conduta. Contudo, aqueles que apresentavam o diagnóstico de TDAH e TC também apresentavam o diagnóstico de TOD. Posteriormente, no seguimento de dez anos desses mesmos pacientes, foi confirmado o risco aumentado para TPAS (Biederman et al., 2006). Em outro estudo de quatro anos de seguimento de crianças do ensino fundamental com alterações no comportamento, August et al. (1999) também observaram que aqueles que apresentavam o diagnóstico de TDAH e TOD raramente evoluíam para o diagnóstico de TC. Contudo, pacientes que apresentavam o diagnóstico de TDAH e TC desde a primeira avaliação sempre apresentavam o diagnóstico de TOD. A justificativa para o diagnóstico de TOD em pacientes com TC reside na sobreposição de sintomas de conduta e de oposição, o que dificulta o diagnóstico. Em decorrência desses achados, os critérios de TOD pelo DSM-IV só podem ser preenchidos se não ocorre transtorno de conduta.
Alguns estudos de seguimento até a vida adulta tentaram esclarecer qual o papel dessas patologias no prognóstico dos pacientes adultos com TDAH e qual a influência de TOD e TC no desenvolvimento de comportamentos anti-sociais na vida adulta. Pacientes com TDAH e TOD apresentam uma chance maior de terem piores notas, maior agressividade, mais problemas com seus pares do que pacientes com o diagnóstico exclusivo de TDAH ou de TOD. Além disso, pacientes apenas com TOD tiveram um melhor desempenho acadêmico do que pacientes com TDAH e pacientes com TDAH e TOD (Carlson et al., 1997).
Apesar de não existirem estudos de seguimento de adultos com diagnóstico de TDAH + TOD ou TOD, pelos achados da literatura de crianças e adolescentes, não há por que pensar em um contínuo desde o TOD até o TPAS. Contudo, não podemos negligenciar o fato de que o TOD acentua as características de externalização próprias do quadro de TDAH com maior expressão de impulsividade e agressividade. Isso se observa melhor durante o atendimento desses pacientes, quando se pode notar que costumam ser de abordagem mais laboriosa. Entretanto, resultados preliminares de nosso estudo de resposta ao tratamento farmacológico com 349 pacientes adultos com TDAH, o TOD não predisse abandono do tratamento proposto.
Transtorno de conduta e transtorno de personalidade anti-social
O transtorno de conduta e o transtorno de personalidade anti-social costumam se apresentar como um contínuo na vida de um mesmo paciente e, quando associados ao TDAH, podem produzir grande impacto no prognóstico e tratamento deste (Biederman et al., 2001). Esses pacientes tornam a abordagem clínica mais difícil, senão frustrante. Mesmo diante de um quadro assim desfavorável, há espaço para esforços centrados no TDAH capazes de, no mínimo, atenuar o montante de sintomas de externalização. Os critérios diagnósticos do DSM-IV (APA, 1995) para essas condições consolidam a impressão de que há um contínuo desde a infância entre o TC e o TPAS.
Pelo DSM-IV (APA, 1995), o transtorno da conduta implica um padrão repetitivo e persistente de comportamento no qual são violados os direitos básicos dos outros ou normas ou regras sociais importantes apropriadas à idade. Três (ou mais) comportamentos devem estar presentes durante os últimos 12 meses, com presença de pelo menos um desses nos últimos seis meses. Os sintomas relacionados incluem os oito critérios descritos para o TOD mais os 15 seguintes: 1) mentir para obter vantagens; 2) iniciar lutas corporais freqüentes; 3) usar armas que possam causar sério dano físico; 4) permanecer na rua à noite apesar de proibições; 5) ser fisicamente cruéis com pessoas; 6) ser fisicamente cruéis com animais; 7) destruir deliberadamente propriedade alheia; 8) Atear fogo com intenção de causar dano; 9) praticar o furto; 10) gazear aula; 11) fugir de casa por mais de uma noite; 12) cometer assaltos; 13) forçar alguém a manter atividade sexual; 14) maltratar colegas; e 15) praticar arrombamentos. Esses sintomas devem causar prejuízo clinicamente significativo no funcionamento social, acadêmico ou ocupacional.
São descritos dois subtipos com base na idade de início do transtorno com início na infância (antes dos 10 anos) ou com início na adolescência (após os 10 anos). O início na infância predispõe ao transtorno de conduta persistente e ao transtorno da personalidade anti-social na idade adulta.
O transtorno de personalidade anti-social é descrito pelo DSM-IV como sendo um transtorno caracterizado por um padrão abrangente de desrespeito e violação dos direitos dos outros, que inicia na infância ou no começo da adolescência e continua na idade adulta. O indivíduo deve ter pelo menos 18 anos e ter tido uma história de alguns sintomas de transtorno de conduta antes dos 15 anos: 1) não se submeter às normas e parâmetros legais; 2) enganar ou manipular os outros, a fim de obter vantagens pessoais ou prazer; 3) impulsividade ou fracasso em planejar o futuro; 4) irritabilidade ou agressividade física; 5) desrespeitar a segurança própria ou alheia; 6) irresponsabilidade; 7) ausência de remorso. O transtorno não pode ocorrer apenas durante o curso de esquizofrenia ou de um episódio maníaco.
Um conjunto de estudos de seguimento traçou o perfil de pacientes com TDAH e comorbidades. Pode-se depreender que haveria dois subgrupos de pacientes com TDAH. Aqueles que apresentam sintomas de externalização e outro grupo sem esses sintomas. Satterfield et al. (1982) acompanharam 110 meninos com TDAH e 88 controles até os 17 anos e observaram que os indivíduos com TDAH apresentaram índices mais elevados de detenção comparados com os controles. Esse estudo apontou para a relação entre TDAH e alterações na conduta. Em um estudo posterior, os mesmos pesquisadores demonstraram que adultos com TDAH apresentavam maiores riscos de criminalidade na idade adulta. No seguimento de Manuzza e Kein (2000), 20% dos pacientes com TDAH apresentavam TC concomitante. Os sintomas de TDAH geralmente antecediam o TC e o TPAS e persistiam até a vida adulta, demonstrando haver uma linha desenvolvimental peculiar em uma parcela dos pacientes com TDAH. Outro estudo (Kuhne et al., 1997) com 91 crianças com TDAH examinou as inter-relações entre TDAH, TOD e TC. Na presença de TC, os pacientes apresentavam mais agressividade, enquanto na presença de TOD manifestavam mais isolamento social. No mesmo ano, Satterfield e Schell (1997) publicaram o seguimento de 89 indivíduos com TDAH até 23 anos e observaram que os indivíduos com TDAH apresentaram mais detenções na juventude e na vida adulta do que os controles. No mesmo estudo, problemas de conduta na infância predisseram criminalidade posterior, assim como o comportamento anti-social na adolescência predisse criminalidade na vida adulta.
Um estudo com 754 crianças adotivas revelou que o TC e o TDAH conferem um risco independente para problemas com a lei e detenções (Gunter et al., 2006).
Os achados desse grupo de estudos sugerem que haja dois subgrupos de crianças com TDAH. Um com TC e outro que não o apresenta. Dessa forma, crianças com TDAH sem problemas de conduta não parecem ter risco aumentado para criminalidade posterior, sugerindo que o TPAS não seja associado ao TDAH em si, mas sim à comorbidade com TC na infância.
CONCLUSÕES
Com base nos estudos anteriormente apresentados, podemos concluir que o TDAH está associado a um aumento na prevalência de TOD, TC e TPAS. No entanto, o que prediz problemas significativos na idade adulta parece ser o TC na infância e na adolescência e não a presença de TOD. Esse subgrupo de pacientes apresenta como característica geral a presença de níveis elevados de agressividade e negativismo, porém, aqueles com TC terão as piores conseqüências. Ou seja, ter TDAH é um fardo para o paciente, seus familiares e a sociedade. Ter TDAH e TOD agrava mais o problema, porém ter TDAH e TC torna o prognóstico muito mais reservado em decorrência das conseqüências nefastas do provável desenvolvimento de transtorno de personalidade anti-social.
Falta, ainda, esclarecer quanto o tratamento precoce do TDAH pode prevenir as conseqüências na vida adulta. Isso já foi observado com relação ao abuso e à dependência de substância nos casos em que o tratamento farmacológico intenso reduziu a incidência dessa comorbidade nos mesmos níveis dos controles (Biederman et al., 1999; Biederman, 2003).
Algumas recomendações ao clínico podem ser delineadas a partir desses achados:
1) Os diagnósticos de TDAH, TOD, TC e TPAS podem existir individualmente. Eles estão apenas inter-relacionados.
2) O TDAH parece surgir mais precocemente na vida da criança.
3) A associação com alterações na conduta se mantém na vida adulta.
4) O desfecho na conduta não é benigno e está associado a uma chance maior de detenções e prisões já na adolescência e persistindo na vida adulta.
5) Os estudos parecem dar base à disposição de tratamento vigoroso e precoce do TDAH, controlando uma variável potente na determinação do conjunto de transtornos associados.
6) TOD não prediz o surgimento de TPAS.
7) TC prediz o surgimento de TPAS.
Potenciais conflitos de interesse: O programa de tratamento para pacientes com TDAH recebe apoio financeiro para pesquisa dos seguintes laboratórios: Bristol-Myers Squibb, Eli-Lilly, Janssen-Cilag, e Novartis.
REFERÊNCIAS
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Endereço para correspondência:
Eugenio Horacio Grevet
Avenida Taquara, 586/606, Petrópolis
90460-210 – Porto Alegre, RS
Fone: (51) 3321-2349
E-mail: grevet@terra.com.br
Eugenio Horacio Grevet
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90460-210 – Porto Alegre, RS
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Recebido 31/05/2007
Aprovado 01/08/2007
Aprovado 01/08/2007
Limitações do simples acesso à tecnologia: focando desigualdades, diferença e educação
Pablo Petit Passos Sérvio1
Limitações de um simples acesso à tecnologia.
Para entendermos as limitações das tecnologias de comunicação é primordial voltarmos nossos olhos para além delas. Nestor Garcia Canclini propõe que a maioria das teses celebratórias das palavras acesso e conexão surgem do fato de que “a relativa unificação globalizada dos mercados não se sente perturbada pela existência de diferentes e desiguais” (2005, p.92). Com tais palavras, o autor quer destacar que o abatimento da potência mobilizadora, que outrora diferenças culturais e desigualdades econômicas produziram, é a principal fonte dos vazios nos discursos sobre acesso às tecnologias.
Ocorre que hoje diferenças e desigualdades sofrem de uma ressignificação, de um desfoque político. Enquanto as desigualdades econômicas são creditadas à “liberdade” e à responsabilidade solitária, omitindo-se os vínculos estruturais entre riqueza e pobreza; as diferenças culturais são repetidamente resumidas à distinção de aparência, à imagens estereotipadas, exibidas “livre de tudo aquilo que as impregna de conflitividade”, o que nos impede “que o diverso nos detenha, nos questione.” (CANCLINI, 1995; MARTÍN-BARBERO, 2004, p.186, 2006, p.254).
A escolha por uma análise que contemple em profundidade as duas faces desta sociedade em que vivemos, desigualdades e diferenças, justifica-se pela certeza de que os problemas políticos, econômicos e comunicacionais não são inaugurados com o não-acesso aos artefatos tecnológicos. Como diz Canclini: "O tecno-apartheid está imbricado num pacote complexo de segregações históricas configuradas por meio de diferenças culturais e desigualdades socioeconômicas e educacionais" (CANCLINI, 2005, p.236). É com base nessa premissa que defendo a hipótese de que o simples acesso aos artefatos tecnológicos de “comunicação” não garante: A) recebimento de informações desejadas; B) conhecimentos necessários a uma educação libertária; C) capacidade de decodificação; D) a oportunidade de avançar do papel de “receptor” para produtor de conteúdos, o que se relaciona com graus de legitimidade; E) a existência de uma Sociedade do Conhecimento.
Com as rodas da economia neo-liberal voltadas para as novas tecnologias não se trata mais de dar o peixe, nem muito menos de ensinar a pescar. Se o leitor me permite explorar esta já desgastada metáfora, o que se propõe é nada mais do que baixar os preços das varas de pescar, e ao fim, comodamente, lavar as mãos, levantar as pernas pro ar e, como se o trabalho estivesse cumprido, dar a largada: “virem-se!” Como se a falta de educação, a extrema pobreza, a fome, a doença, a humilhação, o desequilíbrio dos vícios sempre presentes, a violência, pudessem ser superados apenas com um computador, um celular, uma TV. Como nos diz Lúcia Santaella, “nessa posição apolítica deixam de ver que a economia global informacional é a mais recente expressão da mobilização capitalista da sociedade”. (SANTAELLA, 2003,p. 73)
Os meios de comunicação, incluindo a internet, permanecem sujeitos a relações globais e desiguais de poder. Como exemplo, temos os poderes econômicos que determinam privatizações dos sistemas de telecomunicação, que concentram nas mãos de poucos o controle dos mais diversos meios de comunicação - jornais, TVs, produtoras de cinema, gravadoras, editoras. Conglomerados globais que permitem a participação de poucas vozes. Então, se pensarmos no controle que estas grandes empresas detêm sobre a divulgação de informações, certamente pensamos também no poder simbólico2 erguido sobre a falta de acesso a meios de produção e distribuição de conhecimento e sobre a ausência da diversidade de opiniões. Assim é claro que ter ao alcance das mãos certos artefatos tecnológicos pode amenizar estas limitações, porém a questão é certamente mais profunda e polêmica. 2 Utilizo este termo como cunhado por Bourdieu: poder invisível de construção do sentido imediato do mundo. (BOURDIEU, 1989)
Observemos, por exemplo, a internet que, das novas tecnologias, é a que mais provoca alarde entre os tecnocratas. As promessas em volta da rede são enormes, contudo, se esquecem os eufóricos de que esta não surge em um limbo, em um vácuo à espera de ser preenchido. A internet está carregada das contradições do mundo que surge, como explica Santaella: ...longe de estar emergindo como um reino de algum modo inocente, o ciberespaço e suas experiências virtuais vêm sendo
produzidos pelo capitalismo contemporâneo e estão necessariamente impregnados das formas culturais e paradigmas que são próprios do capitalismo global. O ciberespaço, por isso mesmo, está longe de inaugurar uma nova era emancipatória. Embora a internet esteja
revolucionando o modo com levamos nossas vidas, trata-se de uma revolução que em nada modifica a identidade e a natureza do montante cada vez mais exclusivo e minoritário daqueles que detêm as riquezas e continuam no poder. (SANTAELLA, 2003, p. 75)
Não é preciso que me estenda em explicações para concluirmos que a internet não garante o encontro do indivíduo com todas as informações que este deseja, já que muitos dos conteúdos disponibilizados - a maioria esmagadora de livros e muitos cursos, por exemplo - precisam ser pagos, assim como sempre. Pelo mesmo motivo também não garante o recebimento de “informações necessárias”, aquelas que garantiriam uma formação libertária e cidadã. Mas esta não é uma simples questão de escassez monetária. Não se trata apenas de não receber conteúdos, mas de conhecer e reconhecer conteúdos necessários. Isto é, portanto, uma questão de educação e da qualidade desta.
Notemos que a internet exige de qualquer usuário um nível de destreza mínimo na busca em meio à pluralidade caótica de seus conteúdos. Ora, a net não funciona como um “professor” (um ideal de professor) que vai em direção ao aluno e lhe mostra caminhos a se percorrer. Ela atua sob provocação, o usuário, ao contrário do aluno de sala de aula, não recebe nenhuma informação que não seja resultado de uma busca efetuada por ele próprio. Mas como procurar uma coisa da qual nada se sabe? Isto é ainda mais complexo, pois saber da existência de algo, não implica que tenhamos interesse de conhecê-lo melhor. Por exemplo, muitos têm pouco ou nenhum interesse em conhecer os diferentes culturalmente e ter suas idéias questionadas, por isso, buscam apenas informações que possam utilizar para confirmar seus conceitos prévios. Contudo é preciso promover, incentivar, o conflito entre diversas visões, pois é deste conflito que o conhecimento surge.
Pela sua natureza mercadológica, sua dependência financeira, por estarem reféns de uma competição sem fim, as mídias costumam falhar como educadoras justamente por preocuparem-se constantemente em agradar aos públicos, em satisfazer seus prazeres.
Desde já, não é, portanto, questionável a capacidade da internet sozinha promover emancipação? Esta não deixou de ser, portanto, também uma questão de sala de aula (virtual ou não), de políticas de educação interculturais, de professores qualificados. A internet ou qualquer tecnologia de comunicação tem sim lugar na educação, como suporte, não como princípio, meio e fim. Se observarmos a realidade da educação brasileira — a baixa qualificação e remuneração de professores e escolas com estruturas sucateadas — a preocupação com a internet se mostra bastante precoce. Sobre a maioria da população brasileira, pobre e analfabeta funcional, podemos dizer que “saltamos direto da cultura oral para a cultura de massas (...) nunca fomos letrados” (SANTAELLA, 2003). Será que temos igual flexibilidade na relação com a cultura digital? Será que unicamente o acesso às tecnologias de comunicação resolve o problema da educação pública? Necessitamos mais do que uma educação verticalizada e simplesmente tecnicista, uma que liberte o aluno para desenvolver criticamente suas idéias e promovê-las com igualdade de oportunidades.
Uma educação que possibilitasse ao homem a discussão de sua problemática. De sua inserção nesta problemática. Que o advertisse dos perigos de seu tempo, para que consciente deles, ganhasse a força e a coragem de lutar, ao invés de ser levado e arrastado à perdição de seu próprio “eu”, submetido às prescrições alheias.
Educação que o colocasse em diálogo constante com o outro. Que o predispusesse a constantes revisões. A análise crítica de seus “achados”. A uma certa rebeldia, no sentido mais humano da expressão. (FREIRE, 1996, p. 98) (GRIFO MEU) Infelizmente, antes mesmo da leitura crítica tornar-se uma dificuldade, a decodificação de línguas estrangeiras já impossibilita a utilização maioria dos conteúdos produzidos. Segundo Canclini, 70% dos produtos científicos circulam em inglês, enquanto 16,86% aparecem em francês, 3,14% em alemão e 1,37% em castelhano (2005, p. 229). Esta estatística revela-se, por um lado, irônica, já que o português nem é citado; por outro lado, deixa claro que existem desigualdades entre os idiomas, resultados das diferenças de poder econômico e político-científicos entre países e que não poupam a rede.
Legitimidade é outro conceito que devemos considerar. Para Pierre Bourdieu, “a relação de comunicação não é uma simples relação de comunicação, é também uma relação econômica onde o valor de quem fala está em jogo” (BOURDIEU, 1983, p. 15). Ou seja, ter legitimidade para “fazer ver e fazer crer” não está para todos em graus igualitários, é um reflexo dos poderes que marcam nossa sociedade. A capacidade da internet, por exemplo, de desafiar as legitimidades estabelecidas fora de seu âmbito é questionável. Observemos que os mesmos jornais de papel também possuem os sites de notícias mais visitados.
Por isso, ter um site pessoal na internet não garante o fim do anonimato, nem muito menos que nossas idéias chegarão a influenciar a sociedade. Adquirir legitimidade não é um processo simples, depende de redes de relações e influências, da passagem por provas estabelecidas socialmente e também, por vezes, nem sempre, de poder econômico, seja para estudar em boas escolas e universidades, seja para bancar caríssimas estratégias de comunicação. Como explicar então a aura que se criou sobre os artefatos tecnológicos de comunicação? Como o computador poderia resolver a necessidade de se fazer ouvir de milhões de brasileiros? A verdade é que a maioria de nós não possui educação que possibilite sequer escrever um texto, acesso a tecnologia nenhuma resolverá por si só este problema.
1 Especialista em Teoria da Comunicação e da Imagem pela Universidade Federal do Ceará. Atualmente
é aluno especial do programa de pós-graduação em Cultura Visual – Mestrado -FAV/UFG na disciplina
Tópicos Especiais em Imagem e Tecnologia. É professor-tutor das disciplinas “Temas Transversais” e
“Teoria da arte e da cultura” do curso Licenciatura em Artes Visuais modalidade a distância –
FAV/UFG/UAB. Contato: (62) 81887177 ou pservio@gmail.com
é aluno especial do programa de pós-graduação em Cultura Visual – Mestrado -FAV/UFG na disciplina
Tópicos Especiais em Imagem e Tecnologia. É professor-tutor das disciplinas “Temas Transversais” e
“Teoria da arte e da cultura” do curso Licenciatura em Artes Visuais modalidade a distância –
FAV/UFG/UAB. Contato: (62) 81887177 ou pservio@gmail.com
Para saber mais:
Texto na íntegra- http://arte.unb.br/7art/textos/Pablo%20petit.pdf
PROJOVEM URBANO PROMOVE DEBATE SOBRE CIBERCULTURA E CIBERESPAÇO- TEXTO DE APOIO
Durante a formação continuada do Projovem Urbano Fortaleza, tivemos um debate interessante sobre ciberespaço, cibercultura e o universo virtual como parte da formação do tema integrador Juventude e Tecnologia .
Com o intuito de dar suporte aos educadores que tiverem interesse em aprofundar o debate sobre ciberespaço e cibercultura, segue o link para acessar o material on-line do autor Pirre Levy.
"Cibercultura é uma obra destinada não somente aos que conhecem o universo doCiberespaço, mas também para quem pretende conhecer. O autor do livro se mostra
preocupado e cuidadoso ao oferecer para o leitor a oportunidade de perceber que o
Ciberespaço está provocando uma profunda transformação nas culturas humanas.
Diante dessa afirmação Pierre Lévy dá diretrizes de como usar esse novo modelo
comunicacional de forma inteligente e benéfica."Geanne Lima1(Revista Eletrônica Temática .Ano V, n. 08 – agosto/2009)
CIBERCULTURA - Pierre Levy
http://pt.scribd.com/doc/11036046/Cibercultura-Pierre-Levy
‘Somos um país racista e homofóbico’
Entrevista com Margarida Pressburger, do Subcomitê de Prevenção da Tortura da ONU
A advogada Margarida Pressburger fez o curso de direito nos primeiros anos da ditadura militar, de abril de 1964 a dezembro de 1968. "Entrei com a ‘gloriosa’ e saí com o AI-5", brinca a carioca de 67 anos que há um mês assumiu, em Genebra, uma vaga no Subcomitê de Prevenção da Tortura (SPT), da Organização das Nações Unidas (ONU).
É a primeira vez que o Brasil integra o subcomitê. Criado em 2002 para fiscalizar presídios e outras instituições de privação de liberdade suspeitas de práticas de tortura e maus tratos, ele também denuncia a aplicação de penas cruéis ou degradantes. Este ano, o subcomitê vai inspecionar três países: Ucrânia, Mali e Brasil.
Margarida comemora a aprovação, pelo governo brasileiro, da proposta da ONU de investigar violações de direitos humanos no Irã. É uma crítica da decisão do governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que se recusou, em novembro de 2010, a apoiar resolução que pediu o fim de pena de apedrejamento naquele país. Para ela, Lula excedeu-se no "jogo de cintura" da política externa.
No Brasil, a abertura dos arquivos da ditadura é uma de suas bandeiras. Indagada sobre a nota do Brasil em direitos humanos, foi curta e direta: "De um a dez? Um. Somos um país homofóbico, racista."
Qual será sua primeira missão como integrante do Subcomitê de Prevenção da Tortura?
Estou indo para a Ucrânia no dia 14 de maio. Lá vamos fazer inspeções e visitas a locais de privação de liberdade. Este ano três países serão visitados: Ucrânia, Mali e Brasil. No Brasil eu não me envolvo. Os três países sabem, não é mistério. O mistério é só sobre as datas, que são mantidas por enquanto em sigilo, com exceção da Ucrânia, que já foi comunicada.
O que vai ser investigado na visita à Ucrânia?
A denúncia é a mesma em todo o mundo: tortura em locais de privação de liberdade. Torturas físicas em delegacias, presídios, carceragens. Também vamos a asilos, manicômios, abrigos. Enfim, em todos os lugares onde existe algum tipo de tortura, seja física ou psicológica. Eu já ouvi de agentes brasileiros: "Se não torturar, ninguém fala nada." Essa é a mentalidade. O presidente (dos EUA, George W.) Bush, na sua biografia, diz que salvou a vida de milhares de cidadãos norte-americanos porque utilizou a tortura. É a cultura da tortura. A gente tem de entender que cultura não é tortura. Mahmoud Ahmadinejad (presidente do Irã) acha normal apedrejar uma mulher até a morte. A gente aqui não acha. A presidente Dilma não aprovou o procedimento do presidente Lula ao se abster na ONU.
Qual o significado da posição do Brasil de aprovar uma investigação sobre violação de direitos humanos no Irã?
O rumo mudou; isso deu para perceber no primeiro dia do governo Dilma, que, ao contrário do que alguns pregavam, não é a continuação do governo Lula. Vai ser o governo Dilma, vai deixar a marca dela. E Dilma, ainda mais por ter sido uma ativista política, uma "subversiva" que sofreu os piores tipos de tortura imagináveis, não vai ter aquele jogo de cintura que o Lula teve.
Na sua avaliação, Lula teve jogo de cintura em excesso?
Lula para mim é um grande estadista. Tem aquela história de querer ficar bem com todo mundo. Até mesmo a visita, o beija-mão com Ahmadinejad, não é a característica de Dilma e ela mostrou isso na semana passada. O Lula era um pouquinho fanfarrão. Largava os assuntos mais sérios nas mãos de assessores, inclusive a Dilma.
A sra. acha que o ex-presidente foi muito permissivo em relação a direitos humanos?
Não tenho a menor dúvida de que o presidente jogou o Brasil no panorama mundial. É a personalidade dele. Ele achava que estava trabalhando em cima de direitos humanos. Teve um grande ministro, Paulo Vannuchi, que só não fez mais porque tolheram. O Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) é uma obra-prima, pela forma como foi originalmente redigido. Vannuchi sofreu pressão de todos os lados, da Igreja à bancada retrógrada do Congresso. Teve de alterar a questão do aborto, voltar um pouco atrás na Comissão da Verdade. Acho que agora a Dilma vai recuperar esse tempo.
A senhora defende a punição dos responsáveis por torturas no regime militar?
O Supremo Tribunal Federal decidiu que a Lei da Anistia era bilateral. Então, não vejo como possa surgir punição, infelizmente. A Argentina tem 486 torturadores presos e recentemente prendeu um ancião. Não é porque é um velhinho ou uma velhinha que ficou bonzinho. Entendo que tortura é crime inafiançável. Meu irmão foi barbaramente torturado. O Lula não foi torturado, não teve parentes torturados. Ele sentiu a ditadura, foi perseguido, mas nunca foi torturado. Com a Dilma doeu e doeu muito. Mesmo que os torturadores não possam ser condenados, as famílias têm direito. Eu tenho direito de saber quem fez isso com meu irmão.
A senhora tem orientação do governo para a atuação na ONU?
Não, minha atuação é totalmente independente. Sou representante do Brasil, não do governo. No subcomitê, posso até desagradar à presidente Dilma, à ministra Maria do Rosário (da Secretaria Especial de Direitos Humanos).
Qual será o foco do subcomitê na visita ao Brasil?
Serão os locais de privação de liberdade. Deverá vir uma pré-comissão em maio e eles vão definir. Querem visitar alguma coisa no Norte e outra no Sul. Há presídios em que você tem celas de 12 pessoas nos quais ficam 30 ou 40. Um se encosta na parede e os outros encostam no ombro e vão dormindo, em pé. Durante o banho de sol, eles têm de ir sem sandália havaiana, porque acham que é perigoso. Nunca consegui descobrir qual é a letalidade da sandália havaiana.
Os relatórios do subcomitê podem produzir algum efeito concreto?
Quando conversei com a ministra Maria do Rosário sobre a vinda do SPT, ela disse "ainda bem". Se o SPT fizer um relatório dizendo que viu, alguém vai chamar a ONU de mentirosa? É como a sentença do Araguaia. A Corte Interamericana disse que as famílias têm de receber seus desaparecidos. A presidente Dilma vai cumprir a sentença da Corte Interamericana.
A senhora tem certeza?
Se ela não cumprir, será uma decepção muito grande. Mas acho que não vou me decepcionar.
Em relação aos direitos humanos, em que patamar o Brasil está?
De um a dez? Um. Somos um país homofóbico, racista. Enquanto você não tiver a mentalidade de colocar nas escolas aulas de não discriminação... Direitos humanos têm de ser ensinados no jardim de infância. Ainda temos um chão muito grande para andar.
A advogada Margarida Pressburger fez o curso de direito nos primeiros anos da ditadura militar, de abril de 1964 a dezembro de 1968. "Entrei com a ‘gloriosa’ e saí com o AI-5", brinca a carioca de 67 anos que há um mês assumiu, em Genebra, uma vaga no Subcomitê de Prevenção da Tortura (SPT), da Organização das Nações Unidas (ONU).
É a primeira vez que o Brasil integra o subcomitê. Criado em 2002 para fiscalizar presídios e outras instituições de privação de liberdade suspeitas de práticas de tortura e maus tratos, ele também denuncia a aplicação de penas cruéis ou degradantes. Este ano, o subcomitê vai inspecionar três países: Ucrânia, Mali e Brasil.
Margarida comemora a aprovação, pelo governo brasileiro, da proposta da ONU de investigar violações de direitos humanos no Irã. É uma crítica da decisão do governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que se recusou, em novembro de 2010, a apoiar resolução que pediu o fim de pena de apedrejamento naquele país. Para ela, Lula excedeu-se no "jogo de cintura" da política externa.
No Brasil, a abertura dos arquivos da ditadura é uma de suas bandeiras. Indagada sobre a nota do Brasil em direitos humanos, foi curta e direta: "De um a dez? Um. Somos um país homofóbico, racista."
Qual será sua primeira missão como integrante do Subcomitê de Prevenção da Tortura?
Estou indo para a Ucrânia no dia 14 de maio. Lá vamos fazer inspeções e visitas a locais de privação de liberdade. Este ano três países serão visitados: Ucrânia, Mali e Brasil. No Brasil eu não me envolvo. Os três países sabem, não é mistério. O mistério é só sobre as datas, que são mantidas por enquanto em sigilo, com exceção da Ucrânia, que já foi comunicada.
O que vai ser investigado na visita à Ucrânia?
A denúncia é a mesma em todo o mundo: tortura em locais de privação de liberdade. Torturas físicas em delegacias, presídios, carceragens. Também vamos a asilos, manicômios, abrigos. Enfim, em todos os lugares onde existe algum tipo de tortura, seja física ou psicológica. Eu já ouvi de agentes brasileiros: "Se não torturar, ninguém fala nada." Essa é a mentalidade. O presidente (dos EUA, George W.) Bush, na sua biografia, diz que salvou a vida de milhares de cidadãos norte-americanos porque utilizou a tortura. É a cultura da tortura. A gente tem de entender que cultura não é tortura. Mahmoud Ahmadinejad (presidente do Irã) acha normal apedrejar uma mulher até a morte. A gente aqui não acha. A presidente Dilma não aprovou o procedimento do presidente Lula ao se abster na ONU.
Qual o significado da posição do Brasil de aprovar uma investigação sobre violação de direitos humanos no Irã?
O rumo mudou; isso deu para perceber no primeiro dia do governo Dilma, que, ao contrário do que alguns pregavam, não é a continuação do governo Lula. Vai ser o governo Dilma, vai deixar a marca dela. E Dilma, ainda mais por ter sido uma ativista política, uma "subversiva" que sofreu os piores tipos de tortura imagináveis, não vai ter aquele jogo de cintura que o Lula teve.
Na sua avaliação, Lula teve jogo de cintura em excesso?
Lula para mim é um grande estadista. Tem aquela história de querer ficar bem com todo mundo. Até mesmo a visita, o beija-mão com Ahmadinejad, não é a característica de Dilma e ela mostrou isso na semana passada. O Lula era um pouquinho fanfarrão. Largava os assuntos mais sérios nas mãos de assessores, inclusive a Dilma.
A sra. acha que o ex-presidente foi muito permissivo em relação a direitos humanos?
Não tenho a menor dúvida de que o presidente jogou o Brasil no panorama mundial. É a personalidade dele. Ele achava que estava trabalhando em cima de direitos humanos. Teve um grande ministro, Paulo Vannuchi, que só não fez mais porque tolheram. O Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) é uma obra-prima, pela forma como foi originalmente redigido. Vannuchi sofreu pressão de todos os lados, da Igreja à bancada retrógrada do Congresso. Teve de alterar a questão do aborto, voltar um pouco atrás na Comissão da Verdade. Acho que agora a Dilma vai recuperar esse tempo.
A senhora defende a punição dos responsáveis por torturas no regime militar?
O Supremo Tribunal Federal decidiu que a Lei da Anistia era bilateral. Então, não vejo como possa surgir punição, infelizmente. A Argentina tem 486 torturadores presos e recentemente prendeu um ancião. Não é porque é um velhinho ou uma velhinha que ficou bonzinho. Entendo que tortura é crime inafiançável. Meu irmão foi barbaramente torturado. O Lula não foi torturado, não teve parentes torturados. Ele sentiu a ditadura, foi perseguido, mas nunca foi torturado. Com a Dilma doeu e doeu muito. Mesmo que os torturadores não possam ser condenados, as famílias têm direito. Eu tenho direito de saber quem fez isso com meu irmão.
A senhora tem orientação do governo para a atuação na ONU?
Não, minha atuação é totalmente independente. Sou representante do Brasil, não do governo. No subcomitê, posso até desagradar à presidente Dilma, à ministra Maria do Rosário (da Secretaria Especial de Direitos Humanos).
Qual será o foco do subcomitê na visita ao Brasil?
Serão os locais de privação de liberdade. Deverá vir uma pré-comissão em maio e eles vão definir. Querem visitar alguma coisa no Norte e outra no Sul. Há presídios em que você tem celas de 12 pessoas nos quais ficam 30 ou 40. Um se encosta na parede e os outros encostam no ombro e vão dormindo, em pé. Durante o banho de sol, eles têm de ir sem sandália havaiana, porque acham que é perigoso. Nunca consegui descobrir qual é a letalidade da sandália havaiana.
Os relatórios do subcomitê podem produzir algum efeito concreto?
Quando conversei com a ministra Maria do Rosário sobre a vinda do SPT, ela disse "ainda bem". Se o SPT fizer um relatório dizendo que viu, alguém vai chamar a ONU de mentirosa? É como a sentença do Araguaia. A Corte Interamericana disse que as famílias têm de receber seus desaparecidos. A presidente Dilma vai cumprir a sentença da Corte Interamericana.
A senhora tem certeza?
Se ela não cumprir, será uma decepção muito grande. Mas acho que não vou me decepcionar.
Em relação aos direitos humanos, em que patamar o Brasil está?
De um a dez? Um. Somos um país homofóbico, racista. Enquanto você não tiver a mentalidade de colocar nas escolas aulas de não discriminação... Direitos humanos têm de ser ensinados no jardim de infância. Ainda temos um chão muito grande para andar.
Luciana Nunes Leal
Jornalista. Estado de São Paulo
Adital
As mulheres não são homens
Boaventura de Sousa Santos
Adital
A cultura patriarcal tem uma dimensão particularmente perversa: a de criar a ideia na opinião pública que as mulheres são oprimidas e, como tal, vítimas indefesas e silenciosas. Este estereótipo torna possível ignorar ou desvalorizar as lutas de resistência e a capacidade de inovação política das mulheres.
No passado dia 8 de março celebrou-se o Dia Internacional da Mulher. Os dias ou anos internacionais não são, em geral, celebrações. São, pelo contrário, modos de assinalar que há pouco para celebrar e muito para denunciar e transformar. Não há natureza humana assexuada; há homens e mulheres. Falar de natureza humana sem falar na diferença sexual é ocultar que a "metade” das mulheres vale menos que a dos homens. Sob formas que variam consoante o tempo e o lugar, as mulheres têm sido consideradas como seres cuja humanidade é problemática (mais perigosa ou menos capaz) quando comparada com a dos homens. À dominação sexual que este preconceito gera chamamos patriarcado e ao senso comum que o alimenta e reproduz, cultura patriarcal.
A persistência histórica desta cultura é tão forte que mesmo nas regiões do mundo em que ela foi oficialmente superada pela consagração constitucional da igualdade sexual, as práticas quotidianas das instituições e das relações sociais continuam a reproduzir o preconceito e a desigualdade. Ser feminista hoje significa reconhecer que tal discriminação existe e é injusta e desejar activamente que ela seja eliminada. Nas actuais condições históricas, falar de natureza humana como se ela fosse sexualmente indiferente, seja no plano filosófico seja no plano político, é pactuar com o patriarcado.
A cultura patriarcal vem de longe e atravessa tanto a cultura ocidental como as culturas africanas, indígenas e islâmicas. Para Aristóteles, a mulher é um homem mutilado e para São Tomás de Aquino, sendo o homem o elemento activo da procriação, o nascimento de uma mulher é sinal da debilidade do procriador. Esta cultura, ancorada por vezes em textos sagrados (Bíblia e Corão), tem estado sempre ao serviço da economia política dominante que, nos tempos modernos, tem sido o capitalismo e o colonialismo. Em Three Guineas (1938), em resposta a um pedido de apoio financeiro para o esforço de guerra, Virginia Woolf recusa, lembrando a secundarização das mulheres na nação, e afirma provocatoriamente: "Como mulher, não tenho país. Como mulher, não quero ter país. Como mulher, o meu país é o mundo inteiro”.
Durante a ditadura portuguesa, as Novas Cartas Portuguesas publicadas em 1972 por Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, denunciavam o patriarcado como parte da estrutura fascista que sustentava a guerra colonial em África. "Angola é nossa" era o correlato de "as mulheres são nossas (de nós, homens)" e no sexo delas se defendia a honra deles. O livro foi imediatamente apreendido porque justamente percebido como um libelo contra a guerra colonial e as autoras só não foram julgadas porque entretanto ocorreu a Revolução dos Cravos em 25 de Abril de 1974.
A violência que a opressão sexual implica ocorre sob duas formas, hardcore e softcore. A versão hardcore é o catálogo da vergonha e do horror do mundo. Em Portugal, morreram 43 mulheres em 2010, vítimas de violência doméstica. Na Cidade Juarez (México) foram assassinadas nos últimos anos 427 mulheres, todas jovens e pobres, trabalhadoras nas fábricas do capitalismo selvagem, as maquiladoras, um crime organizado hoje conhecido por femicídio. Em vários países de África, continua a praticar-se a mutilação genital. Na Arábia Saudita, até há pouco, as mulheres nem sequer tinham certificado de nascimento. No Irão, a vida de uma mulher vale metade da do homem num acidente de viação; em tribunal, o testemunho de um homem vale tanto quanto o de duas mulheres; a mulher pode ser apedrejada até à morte em caso de adultério, prática, aliás, proibida na maioria dos países de cultura islâmica.
A versão softcore é insidiosa e silenciosa e ocorre no seio das famílias, instituições e comunidades, não porque as mulheres sejam inferiores mas, pelo contrário, porque são consideradas superiores no seu espírito de abnegação e na sua disponibilidade para ajudar em tempos difíceis. Porque é uma disposição natural. não há sequer que lhes perguntar se aceitam os encargos ou sob que condições. Em Portugal, por exemplo, os cortes nas despesas sociais do Estado actualmente em curso vitimizam em particular as mulheres. As mulheres são as principais provedoras do cuidado a dependentes (crianças, velhos, doentes, pessoas com deficiência). Se, com o encerramento dos hospitais psiquiátricos, os doentes mentais são devolvidos às famílias, o cuidado fica a cargo das mulheres. A impossibilidade de conciliar o trabalho remunerado com o trabalho doméstico faz com que Portugal tenha um dos valores mais baixos de fecundidade do mundo. Cuidar dos vivos torna-se incompatível com desejar mais vivos.
Mas, a cultura patriarcal tem, em certos contextos, uma outra dimensão particularmente perversa: a de criar a ideia na opinião pública que as mulheres são oprimidas e, como tal, vítimas indefesas e silenciosas.
Este estereótipo torna possível ignorar ou desvalorizar as lutas de resistência e a capacidade de inovação política das mulheres. É assim que se ignora o papel fundamental das mulheres na revolução do Egipto ou na luta contra a pilhagem da terra na Índia; a acção política das mulheres que lideram os municípios em tantas pequenas cidades africanas e a sua luta contra o machismo dos lideres partidários que bloqueiam o acesso das mulheres ao poder político nacional; a luta incessante e cheia de riscos pela punição dos criminosos levada a cabo pelas mães das jovens assassinadas em Cidade Juarez; as conquistas das mulheres indígenas e islâmicas na luta pela igualdade e pelo respeito da diferença, transformando por dentro as culturas a que pertencem; as práticas inovadoras de defesa da agricultura familiar e das sementes tradicionais das mulheres do Quénia e de tantos outros países de África; a resposta das mulheres palestinianas quando perguntadas por auto-convencidas feministas europeias sobre o uso de contraceptivos: "na Palestina, ter filhos é lutar contra a limpeza étnica que Israel impõe ao nosso povo”.
[Publicado em Carta Maior].
Sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal) e da Universidade de Wisconsin (EE.UU.)
29.04.11 - Brasil
No passado dia 8 de março celebrou-se o Dia Internacional da Mulher. Os dias ou anos internacionais não são, em geral, celebrações. São, pelo contrário, modos de assinalar que há pouco para celebrar e muito para denunciar e transformar. Não há natureza humana assexuada; há homens e mulheres. Falar de natureza humana sem falar na diferença sexual é ocultar que a "metade” das mulheres vale menos que a dos homens. Sob formas que variam consoante o tempo e o lugar, as mulheres têm sido consideradas como seres cuja humanidade é problemática (mais perigosa ou menos capaz) quando comparada com a dos homens. À dominação sexual que este preconceito gera chamamos patriarcado e ao senso comum que o alimenta e reproduz, cultura patriarcal.
A persistência histórica desta cultura é tão forte que mesmo nas regiões do mundo em que ela foi oficialmente superada pela consagração constitucional da igualdade sexual, as práticas quotidianas das instituições e das relações sociais continuam a reproduzir o preconceito e a desigualdade. Ser feminista hoje significa reconhecer que tal discriminação existe e é injusta e desejar activamente que ela seja eliminada. Nas actuais condições históricas, falar de natureza humana como se ela fosse sexualmente indiferente, seja no plano filosófico seja no plano político, é pactuar com o patriarcado.
A cultura patriarcal vem de longe e atravessa tanto a cultura ocidental como as culturas africanas, indígenas e islâmicas. Para Aristóteles, a mulher é um homem mutilado e para São Tomás de Aquino, sendo o homem o elemento activo da procriação, o nascimento de uma mulher é sinal da debilidade do procriador. Esta cultura, ancorada por vezes em textos sagrados (Bíblia e Corão), tem estado sempre ao serviço da economia política dominante que, nos tempos modernos, tem sido o capitalismo e o colonialismo. Em Three Guineas (1938), em resposta a um pedido de apoio financeiro para o esforço de guerra, Virginia Woolf recusa, lembrando a secundarização das mulheres na nação, e afirma provocatoriamente: "Como mulher, não tenho país. Como mulher, não quero ter país. Como mulher, o meu país é o mundo inteiro”.
Durante a ditadura portuguesa, as Novas Cartas Portuguesas publicadas em 1972 por Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, denunciavam o patriarcado como parte da estrutura fascista que sustentava a guerra colonial em África. "Angola é nossa" era o correlato de "as mulheres são nossas (de nós, homens)" e no sexo delas se defendia a honra deles. O livro foi imediatamente apreendido porque justamente percebido como um libelo contra a guerra colonial e as autoras só não foram julgadas porque entretanto ocorreu a Revolução dos Cravos em 25 de Abril de 1974.
A violência que a opressão sexual implica ocorre sob duas formas, hardcore e softcore. A versão hardcore é o catálogo da vergonha e do horror do mundo. Em Portugal, morreram 43 mulheres em 2010, vítimas de violência doméstica. Na Cidade Juarez (México) foram assassinadas nos últimos anos 427 mulheres, todas jovens e pobres, trabalhadoras nas fábricas do capitalismo selvagem, as maquiladoras, um crime organizado hoje conhecido por femicídio. Em vários países de África, continua a praticar-se a mutilação genital. Na Arábia Saudita, até há pouco, as mulheres nem sequer tinham certificado de nascimento. No Irão, a vida de uma mulher vale metade da do homem num acidente de viação; em tribunal, o testemunho de um homem vale tanto quanto o de duas mulheres; a mulher pode ser apedrejada até à morte em caso de adultério, prática, aliás, proibida na maioria dos países de cultura islâmica.
A versão softcore é insidiosa e silenciosa e ocorre no seio das famílias, instituições e comunidades, não porque as mulheres sejam inferiores mas, pelo contrário, porque são consideradas superiores no seu espírito de abnegação e na sua disponibilidade para ajudar em tempos difíceis. Porque é uma disposição natural. não há sequer que lhes perguntar se aceitam os encargos ou sob que condições. Em Portugal, por exemplo, os cortes nas despesas sociais do Estado actualmente em curso vitimizam em particular as mulheres. As mulheres são as principais provedoras do cuidado a dependentes (crianças, velhos, doentes, pessoas com deficiência). Se, com o encerramento dos hospitais psiquiátricos, os doentes mentais são devolvidos às famílias, o cuidado fica a cargo das mulheres. A impossibilidade de conciliar o trabalho remunerado com o trabalho doméstico faz com que Portugal tenha um dos valores mais baixos de fecundidade do mundo. Cuidar dos vivos torna-se incompatível com desejar mais vivos.
Mas, a cultura patriarcal tem, em certos contextos, uma outra dimensão particularmente perversa: a de criar a ideia na opinião pública que as mulheres são oprimidas e, como tal, vítimas indefesas e silenciosas.
Este estereótipo torna possível ignorar ou desvalorizar as lutas de resistência e a capacidade de inovação política das mulheres. É assim que se ignora o papel fundamental das mulheres na revolução do Egipto ou na luta contra a pilhagem da terra na Índia; a acção política das mulheres que lideram os municípios em tantas pequenas cidades africanas e a sua luta contra o machismo dos lideres partidários que bloqueiam o acesso das mulheres ao poder político nacional; a luta incessante e cheia de riscos pela punição dos criminosos levada a cabo pelas mães das jovens assassinadas em Cidade Juarez; as conquistas das mulheres indígenas e islâmicas na luta pela igualdade e pelo respeito da diferença, transformando por dentro as culturas a que pertencem; as práticas inovadoras de defesa da agricultura familiar e das sementes tradicionais das mulheres do Quénia e de tantos outros países de África; a resposta das mulheres palestinianas quando perguntadas por auto-convencidas feministas europeias sobre o uso de contraceptivos: "na Palestina, ter filhos é lutar contra a limpeza étnica que Israel impõe ao nosso povo”.
[Publicado em Carta Maior].
Sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal) e da Universidade de Wisconsin (EE.UU.)
29.04.11 - Brasil
Rede de Portais Educativos discute relação entre tecnologia e educação
Adital
De hoje (27) até 29 de abril, Santiago do Chile receberá cerca de 80 especialistas de 16 países para debater sobre "Como educar na era dos buscadores”. Essa atividade é uma reunião técnica anual da Rede latino-americana de Portais Educativos (Relpe) e marca os festejos pelos 10 anos do portal EducarChile.
A rede Relpe é composta por portais educativos, autônomos, nacionais de serviço público e gratuito, escolhidos pelos Ministérios de Educação pertencentes a cada país membro. A audiência da Rede alcança cerca de 150 milhões de estudantes e professores.
Os diversos portais educativos presentes no encontro darão conta das distintas abordagens que cada país tem tomado em relação a sua política pública em tecnologia e educação, de acordo com cada uma das realidades nacionais. O principal objetivo é contribuir através das possibilidades tecnológicas do século XXI para melhorar a qualidade e igualdade da educação em cada um dos países.
Entre as experiências que se reúnem em Santiago, se pode destacar: o portal da Argentina, cuja aposta educativa lançou um inovador portal de convergência multimídia, onde a televisão desempenha um papel fundamental; o caso do Uruguai e seu "Plano Ceibal”, que visa dar um computador por criança, como uma forma de vencer a oportunidade de acesso a conteúdos de qualidade na era digital. Entre outros países, como Brasil, México e o próprio Chile.
Cada participante da Rede disponibiliza seus materiais educativos para serem aproveitados pelos outros, de forma a criar um círculo virtuoso que potencie a região. "A Rede se considera uma área de inclusão educativa regional em constante crescimento, e em paralelo se valoriza por ser uma comunidade de reciprocidade e de assistência entre os responsáveis das políticas públicas pertencentes a cada país participante”, segundo o site da organização.
Para mais informações: www.relpe.org
A rede Relpe é composta por portais educativos, autônomos, nacionais de serviço público e gratuito, escolhidos pelos Ministérios de Educação pertencentes a cada país membro. A audiência da Rede alcança cerca de 150 milhões de estudantes e professores.
Os diversos portais educativos presentes no encontro darão conta das distintas abordagens que cada país tem tomado em relação a sua política pública em tecnologia e educação, de acordo com cada uma das realidades nacionais. O principal objetivo é contribuir através das possibilidades tecnológicas do século XXI para melhorar a qualidade e igualdade da educação em cada um dos países.
Entre as experiências que se reúnem em Santiago, se pode destacar: o portal da Argentina, cuja aposta educativa lançou um inovador portal de convergência multimídia, onde a televisão desempenha um papel fundamental; o caso do Uruguai e seu "Plano Ceibal”, que visa dar um computador por criança, como uma forma de vencer a oportunidade de acesso a conteúdos de qualidade na era digital. Entre outros países, como Brasil, México e o próprio Chile.
Cada participante da Rede disponibiliza seus materiais educativos para serem aproveitados pelos outros, de forma a criar um círculo virtuoso que potencie a região. "A Rede se considera uma área de inclusão educativa regional em constante crescimento, e em paralelo se valoriza por ser uma comunidade de reciprocidade e de assistência entre os responsáveis das políticas públicas pertencentes a cada país participante”, segundo o site da organização.
Para mais informações: www.relpe.org
Camila Maciel
Jornalista da Adital
12.04.11 - Mundo
‘A sociedade mediatizada não é uma sociedade feliz’. Entrevista com Ciro Marcondes Filho
IHU - Unisinos
Instituto Humanitas Unisinos
Adital
Um imperativo irreal e cruel diz às pessoas que elas devem estar constantemente "disponíveis” através das novas tecnologias, caso contrário estão mortas, ou se tornaram jurássicas. Essa sociedade mediatizada está longe de ser feliz, alfineta o jornalista Ciro Marcondes Filho na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. "A vida na web depende da submissão do usuário à ditadura da conexão permanente; o sofrimento e a depressão de cada um se constroem pela pouca quantidade de visitas à sua página no Facebook”.
A respeito dos jornalistas frente a esse quadro de verdadeiro desespero por conexão e atualidade ininterruptas, provoca: "Quando os homens se submetem à máquina, eles desaparecem nela, ela os devora. Quando eles se colocam numa distância crítica, têm chance de ver além do horizonte técnico e reagir a ele, sobrevivendo”.
Ciro Marcondes analisa, ainda, os desafios da profissão de jornalista em nossos dias: "estamos diante de um novo jornalismo, mas não diante de uma nova comunicação”, e completa: "o jornalista não tem escolha: ou se transforma ou morre. Uma sociedade pode sobreviver sem jornalistas, mas isso será trágico. Será uma sociedade de shopping centers globais, onde só serão aceitas regras pasteurizadas e ascéticas de convivência, onde a vida será mantida artificialmente, onde qualquer reação mais humana será perseguida por ser perigosamente subversiva”.
Jornalista e sociólogo graduado pela Universidade de São Paulo – USP, Circo Marcondes Filho é mestre em Ciência Política e doutor em Sociologia da Comunicação pela mesma instituição com a tese Comunicação, ideologia e dominação. Fez o pós-doutorado na Universidade Stendhal, de Grenoble, e é livre docente pela USP. Professor e pesquisa da Escola de Comunicação e Artes – ECA da USP, é autor de dezenas de obras, das quais destacamos: O conceito de comunicação e a epistemologia metapórica. Nova Teoria da Comunicação, Vol. III, Tomo 5 (São Paulo: Paulus, 2010), A comunicação para os antigos, a fenomenologia e o bergsonismo. Nova Teoria da Comunicação, vol. III, Tomo 1 (São Paulo: Paulus, 2010) e Ser jornalista - A língua como barbárie e a notícia como mercadoria (São Paulo: Paulus, 2009).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Em que aspectos a comunicação não é uma ciência aplicada?
Ciro Marcondes Filho - A princípio, usar a expressão "comunicação como ciência aplicada” significa o mesmo que dizer que comunicação não é nenhuma prática científica, nenhum saber específico, nenhum campo próprio de investigação mas algo menor, assessório, complementar, espécie de "espaço de aplicação” de outros saberes, esses sim, sólidos, constituídos e reconhecidos, como seria, por exemplo, o caso da Sociologia, da Psicologia, da Antropologia, etc. Comunicação efetivamente não é isso, não é aplicação de nada; é produção de um conhecimento próprio, específico, único. Já é hora de as instituições de fomento e apoio às pesquisas reformularem suas classificações e situar a Comunicação no conjunto de saberes reconhecidos e validados pela comunidade científica.
IHU On-Line - Quais seriam as bases para a reivindicação de maioridade desse saber?
Ciro Marcondes Filho - A Comunicação tem condições de propor as bases para sua consolidação, em primeiro lugar, pelo fato de estar concentrando suas preocupações na definição de seu objeto próprio, a comunicação, que não é trabalhado por nenhuma das demais ciências humanas e, em segundo lugar, por propor uma forma específica de investigá-lo, derivada dessa mesma definição de objeto. As perguntas que esta área do conhecimento se faz são "O que é comunicar?”, "O que se entende intrinsecamente por ‘comunicação'?”, "Qual é a natureza deste processo?” Desta maneira, a comunicação disporia de um núcleo epistêmico específico e exclusivo, que seria o dos estudos dos processos e do acontecimento comunicacional.
A forma de estudá-la não é por meio dos atuais métodos de pesquisa, pois estes derivam de outros contextos de conhecimento, são produtos de outras visões de mundo, outras filosofias, de outro lastro histórico. Em última análise, eles estão subordinados a um modo de proceder de engessa a pesquisa comunicacional, cujo objeto é, por natureza, movente, oscilante, instantâneo e subordinado a condições e situações que só se dão uma única vez.
A ciência da comunicação propõe ao campo do saber uma forma própria de realização de suas investigações partindo de uma história epistemológica diferenciada, de origens filosóficas próprias e de uma base que vem desde a Antiguidade clássica, passando pelo pensamento ocidental moderno, chegando até as colaborações da fenomenologia, do construtivismo, e da filosofia existencial. Comunicação é um saber que nasce da Filosofia. Seu modo de realização inspira-se na apreensão estética e sua prática teórica é tributária da literatura.
IHU On-Line - Quais são os grandes desafios da comunicação para os próximos anos em face do avanço tecnológico e da midiatização?
Ciro Marcondes Filho - A área de comunicação é o setor do conhecimento mais próximo das questões relacionadas ao uso das tecnologias online para produção e emissão de sinais, dados e conteúdos. Cada vez mais as sociedades estarão engajadas neste complexo sistema tecnológico e cada vez mais os relacionamentos humanos, os contatos, as trocas de toda natureza passarão pela mediação técnica. Somente a ciência da comunicação tem condições de poder aprofundar a investigação de seus processos e resultados. Esse, seu maior desafio, a coloca como área do saber prioritária para essas investigações.
IHU On-Line - Que tipo de jornalista se configura e faz necessário a partir desse cenário?
Ciro Marcondes Filho - A prática jornalística tem sofrido forte influência da mudança tecnológica e tem se visto diante de desafios que ultrapassam as grandes questões políticas do passado, as dificuldades econômicas da origem do jornalismo, a periculosidade excepcional dos correspondentes de guerra de todos os tempos. Trata-se hoje, muito mais do que tudo isso, do próprio perfil da profissão que se vê diante de um sistema que produz, ele mesmo, continuamente fatos e novidades, revela notícias retumbantes e se atualiza mais rapidamente do que a própria imprensa. Não bastasse isso, mesmo a comunidade de usuários, formada por centenas de milhões de pessoas, tornou-se, ela também, "colaboradora” na produção de fatos e factoides jornalísticos. Visto dessa maneira, a prática jornalística se vê hoje inundada por essa verdadeira enxurrada informacional que lhe impõe uma séria e radical revisão de sua atuação e de sua importância para não submergir totalmente a essa situação.
IHU On-Line - Existe uma crítica ao excessivo tecnicismo dos cursos de jornalismo,por terem certa carência nas áreas humanas. Esse cenário será agravado com o constante incremento de tecnologias e suas demandas na rotina da profissão?
Ciro Marcondes Filho - Os cursos de jornalismo demonstram no Brasil duas tendências muito claras. De um lado estão aqueles que pretendem reduzi-lo a uma função meramente técnica e convencional de produção de notícias, a um papel secundário na ordem da política, da economia, da cultura e da sociedade. É o setor mais retrógrado do ensino de jornalismo. Os professores não vêm da academia, são antes ex-jornalistas pouco familiarizados com a prática científica, cujo trabalho é apenas repassar uma experiência profissional repetitiva e desgastada ou, então, são acadêmicos teoricamente mais frágeis, que buscam compensar sua inconsistência intelectual através da defesa de guetos autoenclausurados mas politicamente ativos. É o mesmo setor que pretende separar o ensino de jornalismo dos cursos de comunicação e aspira reduzir o jornalismo a uma formação profissionalizante comum, banal.
Do outro lado estão os cursos sintonizados com a necessidade de formação teórica e intelectual do profissional de imprensa para capacitá-lo aos desafios contemporâneos, principalmente diante da velocidade das mudanças da sociedade atual. Os jornalistas formados por faculdades do primeiro tipo serão fatalmente jornalistas triviais, o proletariado da redação, mal pagos e desvalorizados, exatamente porque, formados segundo princípios somente técnicos, não dispõem de capital cultural e intelectual para fazer valer sua posição no mercado. Aqueles que são formados por faculdades do segundo tipo são os únicos que poderão aspirar postos de importância na imprensa brasileira, visto que estarão à altura dos desafios que não são apenas técnicos, mas que exigem uma inserção social mais crítica e com efeitos mais duradouros.
Cursos tecnicistas
Naturalmente, o conflito entre esses dois estilos de formação ficará mais agravado com a tendência da tecnologia em rotinizar a profissão e destituir o jornalista de sua diferença em relação a outros profissionais mediáticos. Os cursos tecnicistas estarão, por isso, cada vez menos capacitados a enfrentar o desafio tecnológico por serem antiquados e comandados por professores muito aquém das altas exigências da tecnologia. Para estar em fase com o desenvolvimento da informatização e da sucessão de transformações, o profissional precisaria estar intelectualmente capacitado a uma visão a distância do processo, a um horizonte que transcenda o reducionismo da tecnologia. Quando os homens se submetem à máquina, eles desaparecem nela, ela os devora. Quando eles se colocam numa distância crítica, têm chance de ver além do horizonte técnico e reagir a ele, sobrevivendo.
IHU On-Line - Já se pode falar em outro jornalismo e em outra comunicação? Por quê?
Ciro Marcondes Filho - Sim, estamos diante de um novo jornalismo mas não diante de uma nova comunicação. O novo jornalismo opera de modo online, considera todas as movimentações que aparecem na tela, sejam elas de blogs, twitters, facebooks, em suma, tudo que desponta como tema especial dentro da enxurrada de acontecimentos banais e triviais que preenchem todos os dias as telas dos computadores. A fonte tornou-se menos exclusiva, a velocidade passou a ser maior, a checagem e a avaliação dos efeitos tornaram-se mais irresponsáveis, há mais perigos no ar. Os boatos, que demoravam algum tempo para se diluir, mas que ainda poderiam ser corrigidos, têm, na atualidade, a plena realização de seu percurso noticioso e circulam agora plenamente como verdade, expondo pessoas diariamente na imprensa. O Twitter veio para dinamizar ainda mais esse processo e sua periculosidade e diante dele, todos são caluniadores em potencial. Os riscos para o cidadão comum, assim como para o político, cresceram exponencialmente.
Todas as tendências conhecidas da história do jornalismo (sua origem na esfera pública burguesa do século XIX, sua transformação em imprensa de massa, a crise diante dos regimes totalitários) foram deixadas para trás diante da revolução da informática, ocorrida a partir das últimas décadas do século XX. Tudo isso, de alguma forma, já foi tratado no meu A saga dos cães perdidos. Mas, já nesse livro, que é do ano 2000, eu anunciava que o profissional de imprensa estava mais ou menos perdido diante da imensa transformação que estava por vir. Colocado diante dela, o jornalista não tem escolha: ou se transforma ou morre. Uma sociedade pode sobreviver sem jornalistas, mas isso será trágico. Será uma sociedade de shopping centers globais, onde só serão aceitas regras pasteurizadas e ascéticas de convivência, onde a vida será mantida artificialmente, onde qualquer reação mais humana será perseguida por ser perigosamente subversiva. Algo no estilo do Fahrenheit 451 (Truffaut, 1966): o campo de concentração total, perfumado e estilizado.
IHU On-Line - De forma geral, o que podemos entender por midiatização? O que caracteriza essa nova "ambiência” em que as novas tecnologias se tornam meios de comunicação também?
Ciro Marcondes Filho - Prefiro utilizar o termo mediatização, visto que "midiatização” é uma excrescência linguística, que deve ser evitada, como, aliás, tudo ligado ao termo mídia. As tecnologias não são apenas máquinas, aparelhos, redes e sistemas internacionais de comunicação. Isso ainda está no plano dos hardwares. As tecnologias constituem mundos, criam universos paralelos, ambientes de contato, convívio, relacionamento. Não me parece que eles "comunicam”, pelo menos no sentido que me parece correto, pois, comunicação é, antes de tudo, quebra de normas, desafio, trepidação das ideias, saída dos lugares-comuns, abandono do convencional e transformação, mudança, alteração da pessoa ou do conjunto social que a recebe. Assim, as tecnologias são ambientes, contextos de operação, complexos de situação. Não é, no entanto, por isso que elas não comunicam. Comunicam, isso sim, pelo fato de não trazerem em si o componente da alteridade, daquilo que está imbuído de vida, tanto nos contatos humanos quanto nos contatos de pessoas com produtos culturais (filmes, livros, peças, instalações, etc.).
IHU On-Line - Em que medida podemos entender a midiatização como fruto da sociedade da informação?
Ciro Marcondes Filho - Ela não é fruto da sociedade da informação; ela é resultado da sobreposição de mundos. O mundo da informatização, surgido do desenvolvimento da cibernética durante a Segunda Guerra Mundial, instalou-se no quadro da civilização ocidental como um novo mundo. A chamada "sociedade da informação” tem sua origem, talvez, num quadro mais remoto, no início do século XX, quando toda a cultura e o pensamento do Ocidente promoveram a grande virada cultural, que foi a criação de uma segunda realidade, a realidade medial, com a introdução do rádio, do cinema de massas, da imprensa de tiragens milionárias, da indústria publicitária, depois, com a televisão. A sociedade se torna da comunicação e da informação no momento em que todos os sistemas técnicos voltam-se à difusão em larga escala, padronizando notícias, acontecimentos, fatos sociais, criando aquilo que McLuhan, nos anos 1960, havia denominado de aldeia global.
IHU On-Line - O que marca a transformação da "sociedade dos meios” para a "sociedade midiatizada”?
Ciro Marcondes Filho - Essas são definições polêmicas e jogam com usos linguísticos equivocados. A sociedade dos meios, dos meios de comunicação "de massa” (como os vistos acima: imprensa em alta escala, cinema como produção do glamour, emissão de televisão que conecta todo um continente no mesmo horário e no mesmo programa), é um quadro do século XX, uma sociedade que opera ainda com o analógico, com a materialidade, com a geografia, com as diferenças históricas; trata-se de uma explosão de sinais e informações que abala o planeta pela penetração, pela força, pela capacidade de agregação em torno dos veículos, por uma certa possibilidade de manipulação e controle. Trata-se da chamada indústria cultural, conceito que ainda não perdeu sua validade teórica e que foi inicialmente descrito por Walter Benjamin e que se tornou a categoria fundante da sociedade dos meios (Mediengesellschaft, para os alemães) e que ganhou estatuto científico com Adorno e Horkheimer, na sua Dialética do esclarecimento. Já a nova sociedade das tecnologias informáticas, caracterizada equivocadamente como "sociedade mediatizada”, visto que este termo é idêntico ao anterior, é este "mundo novo” que se sobrepôs ao antigo mundo. Nada aqui é fixo, permanente, não há memória, tudo sendo digital se desfaz em seguida, a velocidade é alta e há a construção de mundos para onde pessoas podem se transportar virtualmente, entrar em contato, construir casas, etc. (Convém destacar que essa confusão conceitual "sociedade dos meios” e "sociedade mediatizada” – que são terminologicamente a mesma coisa - é resultado de nossa indigência cultural e intelectual, pois, em vez de traduzirmos corretamente o termo "media”, da língua anglo-saxônica, por "media”, como o fizeram os franceses, espanhóis, italianos e portugueses, criamos essa figura bizarra e infeliz do termo "mídia”, que nada significa, a não ser o testemunho de um pensamento canhestro e subdesenvolvido.) Prefiro opor a sociedade dos meios (de comunicação de massa), a mass media society ou civilization à sociedade virtual, sociedade tecnológica.
IHU On-Line - Como a midiatização e a tecnocultura impactam no modelo de leitura usado nos últimos séculos?
Ciro Marcondes Filho - A leitura não perdeu espaço com as tecnologias. Ao contrário, diante da tela do computador não se faz outra coisa senão escrever e ler. O que foi perdido foi o investimento na leitura extensiva, a leitura de livros, de matérias jornalísticas longas, de textos reflexivos. A internet opera preferencialmente com a escrita, a escrita curta e imediata. Ela é, nesse sentido, sensualista, das primeiras reações, das primeiras emoções, da percepção instantânea, dos flashes. Isso poderia ser válido para usos na pesquisa fenomenológica. Porém, não é assim que ocorre. A velocidade de escrita e de leitura está relacionada à agitação mais ou menos alucinada da vida cotidiana, estimulada pelas tecnologias comunicacionais. Elas permitem uma quantidade fabulosa de acessos, contatos, dados, que fazem o usuário ser acometido de uma certa obsessão de tudo dominar, de tudo ler, de tudo possuir, o que torna sua vida ainda mais dramática. A sociedade mediatizada não é uma sociedade feliz; ao contrário, é uma sociedade da compulsão, da cobrança invisível, dos apelos permanentes de estar conectado, pois, caso contrário, a pessoa estará "morta”. A vida na web depende da submissão do usuário à ditadura da conexão permanente; o sofrimento e a depressão de cada um se constrói pela pouca quantidade de visitas à sua página no Facebook. A esperança que nos dá o admirável mundo novo é o fato de que ainda podemos sair dele.
22.03.11 - Mundo/Adital
A economia não pode desconsiderar os serviços prestados pela natureza
Marcus Eduardo de Oliveira e Volmir Meneguzzo*
Já se torna quase consenso que para a execução de boas políticas públicas, é de fundamental importância que a economia e o meio ambiente caminhem necessariamente juntos.
Nesse pormenor, entendemos que também cabe à economia, enquanto ciência social, dentro do estabelecimento de uma visão pluralista que contemple o social e o ecológico, que se desenvolva junto ao seu público, em especial à comunidade, a disseminação da necessária idéia da preservação dos recursos naturais. Para isso, é mister fazer e promover a integração dos conhecimentos econômicos e ecológicos, divulgando-os em larga escala.
Definitivamente, o relacionamento entre a Terra e a Economia tem de ser harmonioso, visto que a segunda é parte da primeira. Nesse pormenor, reforça-se a idéia de que a economia nada mais é que um subconjunto do meio ambiente. É necessário, portanto, criar-se, em todos os aspectos, a boa sincronia entre a economia (atividade produtiva) e o ecossistema (a base dos recursos naturais).
Dito isso, é importante reiterar que o crescimento da economia não pode acontecer sobre as ruínas do sistema conhecido por capital natural. No entanto, é exatamente isso que temos presenciado. Vejamos que em apenas 50 anos, de 1950 a 2000, a economia global foi multiplicada por sete, aumentando a produção de bens e serviços de US$ 6 trilhões para US$ 43 trilhões (dados de 2000). Conquanto, o que não foi respondido nesse mesmo período é a que "preços” ecológico e social esse crescimento elevado foi alcançado.
De nossa parte, nos arriscamos a tentar encontrar as respostas. O preço desse "falso” crescimento sem limites foi (e tem sido), assim acreditamos, o completo desequilíbrio ambiental. Os exemplos disso estão por aí. Enquanto lençóis freáticos caem assustadoramente de um lado, principalmente nas três maiores áreas produtoras de alimentos (China, Índia e EUA), do outro se queima florestas, expandem-se desertos e aumentam-se consideravelmente os níveis de dióxido de carbono. Os rios estão ficando às mínguas. O principal rio dos Estados Unidos (o Colorado) mal chega ao mar. O Nilo já apresenta enorme dificuldade em atingir o Mediterrâneo.
O fato inexorável, entrementes, é que todo esse crescimento produtivo foi, em essência, muito conflitante e pouco (quase nada) sensível às causas da preservação natural. Na base, promoveu e incentivou a expansão econômica à custa da mais brutal agressão ambiental.
Dito de outra forma, o que esse crescimento fez em ritmo voraz foi destruir sobremaneira as bases de apoio que sustentam a própria economia. Abusando do expediente das metáforas, podemos explicar isso da seguinte forma: a economia atirou (e está atirando) uma flecha que, em breve, lhe voltará para o próprio rosto. Assim, a economia agride o ecossistema e por ele, no futuro, será agredida. O resultado disso? Segundo a ONU (Organização das Nações Unidas), na terceira edição do Global Biodiversity Outlook, o GBO-3, "alguns ecossistemas estão próximos de atingir um ponto preocupante, tornando-se cada vez menos úteis à humanidade. Alguns fatores agravantes seriam a rápida diminuição das florestas, a dificuldade de recuperação dos cursos de rios e a morte em massa de arrecifes de corais”.
A natureza, como é fartamente perceptível, vem demonstrando ao homem ao longo da história que sua força é muito superior a capacidade de prevenção dos seres vivos. As enchentes do Rio Amarelo na China em 1887 e 1931 já comunicaram pelas estimativas de mortes que necessário se faz produzir com respeito aos recursos naturais. Ainda na China, a pretensão de promover o desenvolvimento por meio da intervenção na natureza provocou outro grande desastre que foi "a falha na barragem de Banqiao”, com mais de 230 mil mortos.
Segundo Malthus (1798), em "Ensaio Sobre o Princípio da População”, a produção de alimentos e a população crescem de forma desproporcional. Crescem de forma aritmética e geométrica respectivamente. Para estudiosos da atualidade a produção de alimentos atende a proporcionalidade do crescimento da população, porém, a distribuição de renda e de alimentos no mundo desencadeia a fome e a miséria existentes.
A busca por soluções relativas à fome e a miséria no mundo vem de encontro com as propostas de promover o desenvolvimento com base sustentável. As formas como este processo está sendo conduzido proporciona discussões constantes, principalmente pelo contínuo descuido nos sistemas produtivos de matérias primas, sistemas industriais e modelos de consumo. O modelo de produção a qualquer custo sem a adequada preocupação dos impactos ambientais foi ao longo dos anos deixado de lado. Atualmente a preocupação vem proporcionando grandes discussões, porém pequenas ações.
Incentivos para a produção agroecológica, orgânica e a redução do desmatamento vêm compondo temas de debates e promovendo políticas que podem ao longo dos próximos anos amenizarem os impactos maléficos sobre os recursos naturais e ao mesmo tempo produzindo alimentos. As propostas voltadas para a agricultura de baixo carbono são importantes, mas não retornam no curto prazo os prejuízos nos rios e mares do mundo, principalmente em assoreamento e poluição. No contexto dos impactos gerados pela indústria e pelos hábitos e consumo, a poluição e os impactos por resíduos são desastrosos, como são os casos dos depósitos de lixo pelo mundo e a contaminação e assoreamento dos rios.
O desenvolvimento por si já exige que seja sustentável; portanto, cabe destacar que em muitos casos pelo mundo estamos falando de crescimento econômico. Gerar riquezas com base em energia captada nos recursos naturais tem provocado desastres voltados contra a própria vida humana no planeta. Assim, a economia precisa ser conduzida de forma equilibrada e com preocupação maior em impactar menos nos recursos naturais, sejam renováveis ou não renováveis. Gerar menor volume de resíduos; sensibilizar-se para novos modelos de consumo com equilíbrio no consumo de calorias pelo mundo pode ser a base de um processo produtivo e industrial menos maléfico aos recursos naturais e, por conseqüência, aos habitantes do planeta.
* Marcus Eduardo de Oliveira
Economista brasileiro. Especialista em Política Internacional e Mestre em Integração da América Latina (USP). Professor de economia da FAC-FITO e do UNIFIEO, em São Paulo. Articulista do Portal EcoDebate, da Agência Zwela de Notícias (Angola) e do jornal Diário Liberdade (Galiza)
prof.marcuseduardo@bol.com.br / twitter.com/marcuseduoliv / http://blogdoprofmarcuseduardo.blogspot
Volmir Meneguzzo
(**) Economista brasileiro. Especialista em Gestão Empresarial Estratégica de Agribusines (FGV). Mestre em Desenvolvimento Local (UCDB). Professor de gestão estratégica, qualidade e meio ambiente e negociações da Faculdade e Tecnologia do SENAI em Campo Grande, Mato Grosso do Sul.
volmirm6@gmail.com /volmir@ms.senai.br
Cultura popular -CARNAVAL OU O MUNDO COMO TEATRO E PRAZER
Roberto Damatta
Mas qual a receita para o carnaval brasileiro? Sabemos que o carnaval é definido como “liberdade” e como possibilidade de viver uma ausência fantasiosa e utópica de miséria, trabalho, obrigações, pecado e deveres. Trata-se de um momento em que se pode deixar de viver a vida como fardo e castigo. É, no fundo, a oportunidade de fazer tudo ao contrário: viver e ter uma experiência do mundo como excesso – mas como excesso de prazer, de riqueza (ou de “luxo”), de alegria e de riso; de prazer sensual que finalmente fica ao alcance de todos. Roberto Damatta
Se o desastre distribui o malefício sem escolher entre ricos e pobres, o carnaval faz o mesmo, só que ao contrário. A “catástrofe” que o carnaval brasileiro possibilita é a da distribuição livre e igualitária do prazer sensual para todos. O Rei Momo – Dionísio, o Rei da Inversão, da Antiestrutura e do Desregramento – sugere, com o carnaval, a possibilidade bizarra, inventando um universo social onde a regra é praticar sistematicamente todos os excessos!
Por isso, o carnaval é percebido como algo que vem de fora para dentro da sociedade. Como uma onda irresistível que nos domina, controla e seduz inapelavelmente. Ele é igualmente percebido como uma festa onde todos são iguais – ou podem viver uma significativa experiência de igualdade.
Mas o que o carnaval consegue fazer com o Brasil? Que extraordinário é esse que ele tão criativamente inventa?
O carnaval é um ritual de inversão do mundo. Uma catástrofe. Só que é uma reviravolta positiva, porque planejada e, por isso mesmo, vista como desejada e necessária.
No carnaval, trocamos o trabalho que castiga o corpo (o velho tripalium ou canga romana que subjugava escravos) pelo uso do corpo como instrumento de beleza e de prazer. No trabalho estragamos, submetemos e gastamos o corpo. No carnaval, isso também ocorre, mas de modo inverso. Aqui, o corpo é gasto pelo prazer e pela “brincadeira”. Daí por que falamos que “nos esbaldamos” ou “liquidamos” no carnaval.
O carnaval também promove a troca dos uniformes pelas fantasias. Se o uniforme é uma vestimenta que cria ordem e hierarquia, a fantasia permite o exagero e a troca de posições. Note-se que, no carnaval do Brasil, não vestimos costumes, mas “fantasias”. E a fantasia é tanto o sonho acordado quanto aquela roupa que realiza a ponte entre o que realmente somos e o que poderíamos ter sido ou o que merecíamos ser. A fantasia liberta, “desconstrói”, abre caminho e promove a passagem para outros lugares e espaços sociais. Ela permite o livre trânsito das pessoas por dentro de um espaço social que o mundo cotidiano, com suas leis e preconceitos, torna proibitivo. Ademais, ela torna possível passar de “ninguém” a “alguém”; de marginal do mercado de trabalho a figura mitológica.
É precisamente por estar vivendo uma situação na qual as regras do mundo diário estão temporariamente de cabeça para baixo que posso ganhar e realmente sentir uma incrível sensação de liberdade. Liberdade fundamental numa sociedade cuja rotina é dominada pelas hierarquias que a todos sujeitam numa escala de direitos e deveres vindos de cima para baixo, dos superiores para os inferiores, dos “elementos” que entram na fila e das “pessoas” que jamais são vistas em público como comuns.
O que é o Brasil?, de Roberto Damatta. Rio de Janeiro: Rocco, 2003. Volume EJA – Ministério da Educação – PNBE.
No planejamento pedagógico discutimos as temáticas Direitos do trabalho, eu tenho? e Meu trabalho contribui ou prejudica o meio ambiente? Estas indagações foram discutidas nos grupos. Para contribuir com a atividade dos educadores, disponibilizamos os textos trabalhados no encontro.
DIREITO E TRABALHO : POR QUE REDUZIR AS JORNADAS?
Para o movimento sindical, uma jornada menor vai gerar mais empregos e mais qualidade de vida
Vivemos uma realidade de extremos, com muitas pessoas desempregadas e muitas outras trabalhando longas jornadas.
É muito fácil comprovar essa situação. Basta olhar ao redor para saber quantos estão desempregados e quantos estão trabalhando cada vez mais e sem tempo para outras coisas. Provavelmente, muitos de nós se encaixam em uma dessas situações
As longas jornadas de trabalho trazem dificuldades para o convívio social e familiar e fazem crescer os problemas relacionados à saúde, como, por exemplo, as lesões por esforço repetitivo. Por outro lado, muitas famílias enfrentam situações difíceis porque aqueles que deveriam estar trabalhando não conseguem emprego.
Em vista disso, a redução da jornada, como uma das formas de geração de postos de trabalho e melhor qualidade de vida, torna-se uma necessidade social.
Já foi dito que a RJT — redução da jornada de trabalho — sem redução salarial é um instrumento capaz de preservar e criar novos empregos e melhorar a qualidade de vida.
Entretanto, pouca gente se lembra de que novos empregos, mais gente trabalhando, contribuiriam para o aumento da renda e, portanto, do consumo, o que traria expectativas positivas para o investimento e o conseqüente aumento da produção. Enfim, um círculo virtuoso de crescimento econômico e social!
A jornada na atual legislação brasileira hoje
Horas extras: limite 2h/dia
A luta dos trabalhadores brasileiros levou, nos anos 30, à primeira lei nacional sobre jornada de trabalho, limitando-a a 48 horas semanais.
No início da década de 1980 garantiu -se a limitação da jornada em 44 horas semanais, depois estabelecida na Constituição Federal de 1988. Depois dela, todas as mudanças relativas aos direitos do trabalho introduzidas na legislação foram prejudiciais aos trabalhadores.
das horas extras, única proposta de mudança que poderia ter gerado emprego, acabou não sendo implantada. O projeto de lei 1.724, de 1996, que criou o banco de horas e alterou a compensação das horas extras para doze meses, estabelecia o limite de 120 horas extraordinárias dentro do período de um ano.
UMA LIÇÃO DA NAÇÃO IANOMÂMI
Os espíritos diante da tragédia humana e ambiental
Quando, no fim dos anos 1980, houve a grande invasão de 40 mil garimpeiros no território ianomâmi, em Roraima, morreram – por doenças e violências na disputa de terras – cerca de 1.300 indígenas, em particular muitos líderes espirituais, os xamãs. Em relação ao total da população ianomâmi, que era de 12 mil pessoas, o número de mortos foi trágico (mais de 10%). Além das mortes, deu-se outra catástrofe: a poluição da rede hidrográfica e o desmatamento indiscriminado resultaram no aniquilamento da atividade produtiva no Estado. Diante dos mortos e desse estrago sanitário e ambiental, instalou- se entre os ianomâmis a idéia de que estava chegando o fim do mundo.
A representação do ouro e dos metais como algo negativo sempre esteve presente na mitologia ianomâmi. Segundo a crença, o Deus criador do Universo, Omama, escondeu os metais embaixo da terra para proteger os humanos de uma fumaça maligna que eles produzem. Quando os brancos remexeram tudo, liberaram a fumaça e provocaram as muitas mortes entre os ianomâmis – na verdade, a doença que os atacava era a malária, fatal para os povos indígenas de pouco convívio com os brancos.
A fumaça capaz de produzir doença, de acordo com a mitologia ianomâmi, tem o aspecto de gente comum, ou seja, indígena, mas por trás dela está o mau espírito, que tem a aparência de homem branco. Conhecido como Xawarari, o mau espírito é muito assustador e anda em grupos. Chegam às aldeias matando todo mundo, fritando os índios em panelas, arrancandolhes a pele para fazer rede e jogando as entranhas aos seus cães de guarda. Antropólogos dizem que essa representação “canibalista” simboliza a fome dos brancos pela riqueza material.
O xamã Davi Kopenawa, porta-voz dos ianomâmis, ensina que a conseqüência da propagação da fumaça maligna é o extermínio de líderes espirituais, como ele próprio. Com isso, os espíritos, tornados órfãos, se enfurecem e reagem atacando o céu com suas armas sobrenaturais, até que o céu ceda ao próprio peso e desabe sobre a terra. Os xamãs são os únicos capazes de conter as forças agressivas e manter o equilíbrio do mundo, controlar a queda do céu, a ação dos espíritos maléficos e as doenças.
Foi a partir desse mundo espiritual que os ianomâmis interpretaram a catástrofe sanitária e ambiental produzida pelo garimpo. Era natural que vissem nos mortos pela fumaça maligna, que a ação dos brancos liberou, um indício forte de fim do mundo. Para eles, o mundo só está funcionando porque os xamãs trabalham o tempo todo, como é seu papel. Diz o xamã Davi Kopenawa: “Deve-se manter relações de troca espiritual com todas as forças e entidades do Universo para ele funcionar de uma maneira ordenada e a humanidade ficar com o seu espaço seguro e tranqüilo”.
A representação do ouro e dos metais como algo negativo sempre esteve presente na mitologia ianomâmi. Segundo a crença, o Deus criador do Universo, Omama, escondeu os metais embaixo da terra para proteger os humanos de uma fumaça maligna que eles produzem. Quando os brancos remexeram tudo, liberaram a fumaça e provocaram as muitas mortes entre os ianomâmis – na verdade, a doença que os atacava era a malária, fatal para os povos indígenas de pouco convívio com os brancos.
A fumaça capaz de produzir doença, de acordo com a mitologia ianomâmi, tem o aspecto de gente comum, ou seja, indígena, mas por trás dela está o mau espírito, que tem a aparência de homem branco. Conhecido como Xawarari, o mau espírito é muito assustador e anda em grupos. Chegam às aldeias matando todo mundo, fritando os índios em panelas, arrancandolhes a pele para fazer rede e jogando as entranhas aos seus cães de guarda. Antropólogos dizem que essa representação “canibalista” simboliza a fome dos brancos pela riqueza material.
O xamã Davi Kopenawa, porta-voz dos ianomâmis, ensina que a conseqüência da propagação da fumaça maligna é o extermínio de líderes espirituais, como ele próprio. Com isso, os espíritos, tornados órfãos, se enfurecem e reagem atacando o céu com suas armas sobrenaturais, até que o céu ceda ao próprio peso e desabe sobre a terra. Os xamãs são os únicos capazes de conter as forças agressivas e manter o equilíbrio do mundo, controlar a queda do céu, a ação dos espíritos maléficos e as doenças.
Foi a partir desse mundo espiritual que os ianomâmis interpretaram a catástrofe sanitária e ambiental produzida pelo garimpo. Era natural que vissem nos mortos pela fumaça maligna, que a ação dos brancos liberou, um indício forte de fim do mundo. Para eles, o mundo só está funcionando porque os xamãs trabalham o tempo todo, como é seu papel. Diz o xamã Davi Kopenawa: “Deve-se manter relações de troca espiritual com todas as forças e entidades do Universo para ele funcionar de uma maneira ordenada e a humanidade ficar com o seu espaço seguro e tranqüilo”.
Um ambientalista assinaria embaixo.
Adaptado do texto O Mundo, para os Ianomâmis, já está acabando, de Julia Contier, publicado na revista Caros Amigos, especial Terra em Transe, abril de 2005
29.11.10 - MUNDO |
Centenário de morte de Leon Tolstói, mestre de Gandhi
Leonardo Boff *
Ocupando lugar central da sala de estar de minha casa há impressionante quadro de um pintor polonês mostrando Tolstói (1828-1910) sendo abraçado pelo Cristo coroado de espinhos. Ele está vestido como um camponês russo e parece extuado como a simbolizar a humanidade inteira chegando finalmente ao abraço infinito da paz depois de milhões de anos ascendendo penosamente o caminho da evolução. Foi um presente que recebi do então Presidente da Assembleia da ONU Miguel d’Escoto Brockmann, grande devoto do pai do pacifismo moderno. No dia 20 de novembro celebrou-se o centenário de sua morte em 1910. Ele merece ser recordado não só como um dos maiores escritores da humanidade com seus romances Guerra e Paz (1868) e Anna Karenina (1875) entre outros tantos, perfazendo 90 volumes, mas principalmente como um dos espíritos mais comprometidos com os pobres e com a paz, considerado o pai do pacifismo moderno. Para nós teólogos, conta especialmente o livro O Reino de Deus está em vós escrito depois de terrível crise espiritual quando tinha 50 anos (1978). Frequentou filósofos, teólogos e sábios e ninguém o satisfez. Foi então que mergulhou no mundo dos pobres. Foi ai que redescobriu a fé viva "aquela que lhes dava possibilidade de viver". Tolstói considerava esta obra a mais importante de tudo o que escreveu. Seus famosos romances tinha-os, como confessa no Diário de 28/20/1895, "conversa fiada de feirantes para atrair fregueses com o objetivo de lhes vender depois outra coisa bem diferente". Levou três anos para terminá-la (1890-1893). Saiu no Brasil pela Editora Rosa dos Tempos (hoje Record) em 1994, com bela introdução de Frei Clodovis Boff, mas infelizmente esgotada.
O Reino de Deus está em vós, logo traduzido em várias línguas, teve enorme repercussão, gerando aplausos e acirradas rejeições. Mas a maior influência foi sobre Gandhi. Mergulhado também em profunda crise espiritual, acreditando ainda na violência como solução para os problemas sociais, leu o livro em 1894. Causou-lhe uma abissal comoção:"a leitura do livro me curou e fez de mim um firme seguidor da ahimsa (não violência)". Distribuía o livro entre amigos e o levou para a prisão em 1908 para meditá-lo. O apóstolo da "não-violência ativa" teve como mestre a Leon Tolstói. Este foi excomungado pela Igreja Ortodoxa e o livro vetado pelo regime czarista.
Qual a tese central do livro? É a palavra de Cristo: "Não resistais ao mal" (Mt 5,39). O sentido é: "Não resistais ao mal com o mal". Ou não respondais a violência com violência. Não se trata de cruzar os braços, mas de responder à violência com a não-violência ativa: com a bondade, a mansidão e o amor. Em outra forma: "não revidar, não retaliar, não contra-atacar, não se vingar". Estas atitudes verdadeiras possuem uma força intrínseca invencível como ensina Gandhi. Para o profeta russo tal preceito não se restringe ao cristianismo. Ele traduz a lógica secreta e profunda do espírito humano que é o amor. Toca no sagrado que está dentro de cada um. Por isso o título do livro O Reino de Deus está em vós.
Gandhi traduziu a nao-violência tolstoiana como não-cooperação, desobediência civil e repúdio ativo a toda servilidade. Tanto ele como Tolstói sabiam que o poder se alimenta da aceitação, da obediência cega e da submissão. Porque tanto o Estado quanto a Igreja exigem estas atitudes servis, desqualifica-as de forma contundente. São instituições que tolhem a liberdade, atributo inalienável e definitório do ser humano. No frontispício do livro lemos a frase de São Paulo:"não vos torneis servos dos homens"(1Cor 7,23).
Para Tolstói o cristianismo é menos uma doutrina a ser aceita do que uma prática a ser vivida. Ele está à frente e não atrás. Para trás parece que faliu. Mas à frente é uma força que não foi ainda totalmente experimentada. E é urgente praticá-la Profeticamente Tolstói percebia a irrupção de guerras violentas, como, de fato, ocorreram. A casa está pegando fogo e não há tempo para se perguntar se é preciso sair ou não.
Tolstói tem uma mensagem para o momento atual, pois os grandes continuam acreditando na violência bélica para resolver problemas políticos no Iraque e no Afeganistão. Mas outros tempos virão. Quando o pintinho já não pode mais ficar no ovo, ele mesmo rompe a casca com o bico e então nasce. Assim deverá nascer uma nova era de não-violência e de paz.
Qual a tese central do livro? É a palavra de Cristo: "Não resistais ao mal" (Mt 5,39). O sentido é: "Não resistais ao mal com o mal". Ou não respondais a violência com violência. Não se trata de cruzar os braços, mas de responder à violência com a não-violência ativa: com a bondade, a mansidão e o amor. Em outra forma: "não revidar, não retaliar, não contra-atacar, não se vingar". Estas atitudes verdadeiras possuem uma força intrínseca invencível como ensina Gandhi. Para o profeta russo tal preceito não se restringe ao cristianismo. Ele traduz a lógica secreta e profunda do espírito humano que é o amor. Toca no sagrado que está dentro de cada um. Por isso o título do livro O Reino de Deus está em vós.
Gandhi traduziu a nao-violência tolstoiana como não-cooperação, desobediência civil e repúdio ativo a toda servilidade. Tanto ele como Tolstói sabiam que o poder se alimenta da aceitação, da obediência cega e da submissão. Porque tanto o Estado quanto a Igreja exigem estas atitudes servis, desqualifica-as de forma contundente. São instituições que tolhem a liberdade, atributo inalienável e definitório do ser humano. No frontispício do livro lemos a frase de São Paulo:"não vos torneis servos dos homens"(1Cor 7,23).
Para Tolstói o cristianismo é menos uma doutrina a ser aceita do que uma prática a ser vivida. Ele está à frente e não atrás. Para trás parece que faliu. Mas à frente é uma força que não foi ainda totalmente experimentada. E é urgente praticá-la Profeticamente Tolstói percebia a irrupção de guerras violentas, como, de fato, ocorreram. A casa está pegando fogo e não há tempo para se perguntar se é preciso sair ou não.
Tolstói tem uma mensagem para o momento atual, pois os grandes continuam acreditando na violência bélica para resolver problemas políticos no Iraque e no Afeganistão. Mas outros tempos virão. Quando o pintinho já não pode mais ficar no ovo, ele mesmo rompe a casca com o bico e então nasce. Assim deverá nascer uma nova era de não-violência e de paz.
* Teólogo, filósofo e escritor
Violência de classe e gênero
Iolanda Toshie Ide *
Quando se exige medidas eficientes como caminho para a superação da violência contra mulheres, não se confunda com a busca da pena de morte e a diminuição da idade de responsabilidade penal. Geralmente, é preconceito de classe. Vejamos. O assassinato de Liana Friedenbach, menina rica, cujo pai a procurou até de helicóptero, mereceu passeata reivindicando pena de morte para os assassinos. O mesmo não assistimos quando se tratou de Jorge, suposto autor do homicídio dos pais (crime da rua Cuba). Também não se pediu pena de morte para Suzane Richthofen acusada de planejar o assassinato dos próprios pais.
Jorge e Suzane são ricos, um dos supostos assassinos de Liana tem apenas 16 anos e é pobre. O rabino Henry Sobel e o pai de Liana pediram pena de morte e modificação do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) para que o rapaz seja processado. Houve quem participasse da manifestação exibindo faixas com esses propósitos.
Até agora, o goleiro Bruno e o advogado e ex-policial Misael, ricos, assassinos respectivamente de Selma Samúdio e de Mércia Nakashima, não foram alvo de pedidos de pena de morte, afinal são de outra classe. Houve até tentativas de culpabilizar uma das vítimas. Quando a vítima é pobre, pode ser transformada em ré. 25 de novembro, Dia Latinoamericano e Caribenho de Combate à Violência contra Mulheres, deve merecer muita reflexão que redundem em medidas concretas para que a legislação finalmente seja cumprida e se deixe de naturalizar esse tipo de violência.
A Lei Maria da Penha veio também para desnaturalizar a violência sexista, trouxe a novidade das medidas protetivas e tipifica a violência contra mulheres como crime.
Na prática, porém, mesmo após denúncias, boletins de ocorrências lavrados e solicitações de medidas protetivas, seguem ocorrendo feminicídios como o da cabeleireira cuja câmera filmou o próprio assassinato, o de Eliza Salmúdio e Mércia Nakashima, entre outros tantos.
São lembradas as assassinadas Leila Diniz, Eliene de Grammont, Sandra Gomide,... E as outras dezenas de milhares de assassinadas? Merecem o silêncio porque são pobres? Segundo o Mapa da Violência 2010, estudo dos homicídios feito com base nos dados do SUS, em dez anos (de 1997 a 2007), 41.532 mulheres (meninas e adultas) foram assassinadas.
Urge superar esse quadro, mas não defendemos a pena de morte. Queremos a aplicação da Lei Maria da Penha.
Viver sem violência é um direito nosso!
Jorge e Suzane são ricos, um dos supostos assassinos de Liana tem apenas 16 anos e é pobre. O rabino Henry Sobel e o pai de Liana pediram pena de morte e modificação do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) para que o rapaz seja processado. Houve quem participasse da manifestação exibindo faixas com esses propósitos.
Até agora, o goleiro Bruno e o advogado e ex-policial Misael, ricos, assassinos respectivamente de Selma Samúdio e de Mércia Nakashima, não foram alvo de pedidos de pena de morte, afinal são de outra classe. Houve até tentativas de culpabilizar uma das vítimas. Quando a vítima é pobre, pode ser transformada em ré. 25 de novembro, Dia Latinoamericano e Caribenho de Combate à Violência contra Mulheres, deve merecer muita reflexão que redundem em medidas concretas para que a legislação finalmente seja cumprida e se deixe de naturalizar esse tipo de violência.
A Lei Maria da Penha veio também para desnaturalizar a violência sexista, trouxe a novidade das medidas protetivas e tipifica a violência contra mulheres como crime.
Na prática, porém, mesmo após denúncias, boletins de ocorrências lavrados e solicitações de medidas protetivas, seguem ocorrendo feminicídios como o da cabeleireira cuja câmera filmou o próprio assassinato, o de Eliza Salmúdio e Mércia Nakashima, entre outros tantos.
São lembradas as assassinadas Leila Diniz, Eliene de Grammont, Sandra Gomide,... E as outras dezenas de milhares de assassinadas? Merecem o silêncio porque são pobres? Segundo o Mapa da Violência 2010, estudo dos homicídios feito com base nos dados do SUS, em dez anos (de 1997 a 2007), 41.532 mulheres (meninas e adultas) foram assassinadas.
Urge superar esse quadro, mas não defendemos a pena de morte. Queremos a aplicação da Lei Maria da Penha.
Viver sem violência é um direito nosso!
* Presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulheres de Lins (SP) e Professora aposentada da UNESP e Militante da Marcha Mundial de Mulheres (MMM)
fonte:http://www.adital.com.br/site/noticia.asp
Educação Trabalho e Lazer
texto indicado por Claudenice , nossa formadora, para alimentar o debate.
Christianne Luce Gomes Werneck*
O significado de lazer como o inverso das obrigações de diferentes naturezas, principalmente das obrigações do trabalho, vem predominando em nosso contexto. Freqüentemente, entende-se o lazer como tempo de "não-trabalho", tempo "livre" ou "desocupado"; tempo dedicado à diversão, à recuperação de energias, à fuga das tensões e ao esquecimento dos problemas que permeiam a nossa vida cotidiana.
Constituindo um momento propício para gozar a vida, difunde-se a idéia de que o lazer é capaz de proporcionar tudo aquilo de que somos privados não somente no trabalho, mas em todas as dimensões de nosso viver: o prazer, a liberdade, a alegria, a autonomia, a criatividade e a realização. Contudo, o lazer fracassa juntamente com as nossas insatisfações, pois não representa um fato isolado da dinâmica social mais ampla, refletindo as contradições e as múltiplas formas de alienação e de marginalização presentes em nosso meio.
Nesse sentido, para compreender porque o lazer vem sendo concebido como um tempo oposto ao trabalho, capaz de resolver ou atenuar as mazelas da sociedade, é essencial analisar o seu processo de constituição histórica no mundo ocidental, sempre concebido em função de determinados interesses hegemônicos.
1 O ponto de partida desta história: lazer e trabalho na Antigüidade clássica
As noções de lazer e de trabalho, bem como todo o saber produzido no mundo ocidental, tem suas raízes primeiras na Antigüidade clássica. Esse contexto histórico é marcado pelo apogeu urbano, intelectual e artístico de Atenas, centro para onde convergiam produtos e idéias do mundo inteiro e de onde partiam, em todas as direções, os princípios básicos de todo o conhecimento construído no Ocidente.
Os gregos relacionavam o lazer com o ócio – desprendimento das tarefas servis –, condição propícia à contemplação, à reflexão e à sabedoria. No entanto, apesar de assumir caráter contemplativo e reflexivo, o lazer não significava passividade. Ao contrário, representava um exercício em forma elevada, atribuído à alma racional: os tesouros do espírito eram frutos do ócio. Como lembram Carlton Yoshioka e Steve Simpson (1989), o lazer (skhole) era o inverso de ocupação (ascholia), de recreação (anapansis) e de divertimento (paidéia). Recreação e divertimento consistiam intervalos entre ocupações, sendo relegados às crianças.
Estudos de Hannah Arendt (1993) revelam que a palavra grega skhole, assim como a latina otium, significam toda e qualquer isenção da atividade política e não simplesmente lazer, embora ambas sejam também utilizadas para indicar cessação de trabalho. Entretanto, skhole não resultava da existência de um "tempo de folga" conquistado sobre o trabalho, mas era a possibilidade de abstenção consciente das atividades ligadas à mera subsistência.
Nesse entendimento, não era qualquer pessoa que poderia gozar do lazer, porque isso implicava, necessariamente, as condições de paz, de prosperidade e de liberdade em face das tarefas servis e das necessidades da vida de trabalho. Como dependia de certas condições políticas e socioeconômicas, o lazer representava um privilégio reservado unicamente aos filósofos.
Nesse sentido, para saber compreender o lazer é preciso aprender e desenvolver certas habilidades que tenham por fim o próprio indivíduo que goza desse repouso. Por essa razão, as classes que se dedicam à "vida ativa" – artesãos, lavradores e guerreiros – deveriam estar em condições de produzir e de fazer a guerra mas, para Aristóteles, valia muito mais gozar da paz e do repouso proporcionados pelo lazer.
Para compreender o significado da expressão "vida ativa" em Aristóteles, busco auxílio nas análises realizadas por Hannah Arendt (1993). Segundo as considerações dessa autora, a expressão vita activa designa três atividades humanas fundamentais: o labor (labor), o trabalho (poiesis) e a ação (praxis). O labor é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano; relaciona-se às necessidades vitais produzidas e introduzidas no decorrer da existência. Com isso, a condição humana do labor é a própria vida. Ele assegura não apenas a sobrevivência do indivíduo, mas a perpetuação da espécie.
O trabalho, por sua vez, é a atividade correspondente ao artificialismo da existência humana, traduz o fazer, o fabricar, o criar pela arte. É obra do homo faber, ser humano que maneja instrumentos, capaz de produzir um mundo "artificial" de coisas, nitidamente distinto de qualquer ambiente natural. O trabalho e o seu produto – o artefato humano – emprestam determinada permanência e durabilidade à futilidade da vida e ao caráter efêmero do tempo humano. Dessa forma, a condição humana do trabalho é a mundanidade.
A ação corresponde à condição humana da pluralidade e é a única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação dos objetos ou da matéria. O recurso utilizado pelo ser humano é o discurso, a palavra: trata-se da ação no campo ético e político.
Com isso, o lazer era o inverso de vita activa – que engloba tanto o labor, como o trabalho ou a ação – sendo então associado ao que Aristóteles entende por vita contemplativa, exercício nobre ao qual somente poucos poderiam se entregar. Além disso, é importante ressaltar o caráter a-político e a-histórico assumido pelo lazer, uma vez que, para gozá-lo, era fundamental abster-se do trabalho útil ou produtivo e cessar toda a vida política concretizada nas delimitações do espaço público da polis, buscando o recolhimento privado, base do repouso filosófico.
As considerações aristotélicas influenciaram sobremaneira a constituição do pensamento ocidental, sobretudo no que se refere ao entendimento de lazer como algo que está atrelado ao trabalho, assumindo contraditórias relações. A verdadeira relação que caracteriza a categoria trabalho-lazer na Antigüidade clássica, sobretudo considerando o esplendor grego, é a dialética necessidade-liberdade pois, como nos diz Hannah Arendt (1993), o desejo de libertação das fadigas e penas do trabalho é tão antigo quanto a história de que se tem registro.
Entretanto, não foi essa a idéia difundida após o declínio da civilização helênica, que ocorreu paralelamente à ascensão romana. Embora bastante influenciada pela cultura grega, Roma foi palco para a constituição de novos valores, principalmente no que se refere à propagação do cristianismo.
Ao aceitar adeptos de todas as classes sociais, conceder alguns direitos às mulheres e ao enunciar uma preocupação com a salvação após a morte, o cristianismo possibilitou novos significados ao trabalho e ao lazer, que passam a corresponder às perspectivas cristãs. Que novos contornos foram, então, delineados para o lazer e para o trabalho no contexto medieval?
2 Incorporando novos valores no período medieval
Com a difusão do cristianismo, surge um novo elemento que passa a definir outros sentidos às concepções de lazer e também de trabalho: Deus. Com isso homem e mundo, lazer e trabalho passaram a ser concebidos como criação divina e o homem, dotado de razão, sentimentos e emoção, passa a ser um portador de livre-arbítrio, devendo encaminhar sua vida de acordo com um código moral revelado por Deus.
Esse código moral era, ao mesmo tempo, baseado na condenação do lazer – uma vez que ele representava um perigo à purificação da alma – e na ênfase à noção aristotélica de ócio como contemplação, vida dedicada aos deleites do espírito de forma restrita, vigiada e extremamente controlada. No caso do trabalho, a origem dessa palavra (do latim tripalium) expressa a idéia de padecimento e cativeiro.
Revestido da dimensão religiosa, o trabalho manteve a conotação de algo penoso, um verdadeiro castigo para o ser humano. Tal sentido pode ser encontrado no Antigo Testamento, onde o trabalho é associado a tudo aquilo que é desagradável, por ser uma punição de Deus ao pecado original. Assim está escrito no livro do Gênesis, em seu terceiro capítulo, versículo 19: "No suor do teu rosto comerás o teu pão, até que te tornes à terra".
Nesses termos, era imprescindível que o ser humano aceitasse sua condição de pecador dedicando-se, sem questionamentos, ao árduo trabalho. Em contrapartida, seus momentos de repouso deveriam ser orientados para a busca da paz e da purificação do espírito, evitando todo o tipo de tentação causada pelos prazeres da carne. Somente dessa forma seria possível alcançar um lugar entre os "eleitos" de Deus.
O lazer, também restrito a alguns privilegiados nesse contexto histórico, só poderia ser vivenciado se contribuísse para elevar a alma à Deus, impregnando valores morais considerados essenciais para o mundo do trabalho, para a estruturação da família nos moldes cristãos e, sobretudo, para a manutenção da Igreja católica como corporação universal, como salientam os estudos realizados por Eustáquia Salvadora de Sousa (1994).
Com ênfase no aspecto moral, o trabalho era visto como um dever, como um modo de servir a Deus. Segundo esse pensamento, como o destino e a vocação de cada um é previamente definido por Deus, qualquer profissão deveria ser uma forma de o homem mostrar, por meio dos êxitos alcançados em seu ofício, que é um eleito do Senhor. Por esse motivo, todos deveriam entregar-se inteiramente ao trabalho, evitando o consumo supérfluo e a riqueza, uma vez que consistiam tentações para a vadiagem e o relaxamento.
Embora as condições de vida dos servos e camponeses medievais fossem muito superiores às dos escravos romanos, eram ainda muito precárias, marcadas pela fome, pela miséria e por pesados trabalhos: condição necessária à eterna salvação. Além disso, todas as ocasiões festivas realizadas nesse período tinham um fim religioso, o que propiciava a incorporação de determinados sentidos, que objetivavam a manutenção da ordem social vigente.
Assim sendo, trabalho e lazer foram utilizados como eficiente mecanismo de controle moral e social, colocado a serviço de determinados interesses. Mas esse revestimento cristão que manipulou o trabalho e o lazer continuou se perpetuando no decorrer da Modernidade, ou cedeu lugar a novos princípios?
3 A Modernidade: palco de mudanças históricas para o trabalho e o lazer
Segundo Marilena Chauí (1986), é difícil precisar, cronologicamente, quando se inicia a Modernidade. Apesar dessa dificuldade, muitos historiadores designam o Renascimento como um período de transição entre as Idades Medieval e Moderna, fase marcada por crises de diversas naturezas. Alguns historiadores, contudo, preferem considerar o início da Modernidade no período conhecido como "Século de Ferro" (1550 a 1660), baseando-se nas grandes transformações econômicas, políticas e sociais decorrentes da implantação do capitalismo na Europa.
Para ser compreendido em suas diferentes dimensões, é preciso que o capitalismo não seja reduzido à economia de mercado, pois a relação fundante desse sistema é social – embora nem sempre ela apareça como tal. Nesse sentido, o capitalismo é um sistema histórico-social que tem uma identidade própria, baseada na relação dialética entre a burguesia e o proletariado.
Allain Touraine (1994) afirma que o ideal capitalista é sacrificar tudo em nome do trabalho, mas isso não assegura a salvação, e sim o acúmulo de riqueza para os detentores do capital. Dessa forma, os pilares do capitalismo são sustentados pela exploração da mão-de-obra assalariada, que não tem outro recurso que não seja vender, em troca de um salário, a sua própria força de trabalho.
Apesar de o capitalismo não ser um sistema rígido, uma vez que se vem perpetuando graças à sua grande capacidade de adaptação e flexibilidade, a história construída em nossa sociedade revela a sua "fratura exposta": a exploração proveniente da Revolução Industrial.
Mesmo havendo uma divergência de opiniões, pode-se afirmar que a Revolução Industrial ocorreu na segunda metade do século XVIII na Grã-Bretanha, sobretudo na Inglaterra, com os aperfeiçoamentos da máquina a vapor, principalmente na produção têxtil e metalúrgica. A Revolução Industrial caracteriza-se pela riqueza de seus inventos e é traduzida como a combinação entre técnica e ciência. A partir daí, veio atingindo toda a Europa e o resto do mundo.
Além da Revolução Industrial, a Revolução Francesa também foi responsável pelo estabelecimento de uma nova ordem política e social na moderna sociedade européia. Essas revoluções foram marcantes para a consolidação do capitalismo e encerraram um golpe mortal no feudalismo. A burguesia, classe média em ascensão, já detinha o poder econômico. Faltava-lhe, contudo, o poder político. Foi assim que a Revolução Francesa, escoltada pelos princípios "igualdade, liberdade e fraternidade", provocou o estabelecimento da moderna sociedade burguesa e favoreceu a expansão do capitalismo na Europa.
Assim sendo, o fim do século XVIII, na Europa, é um dos grandes momentos revolucionários de nossa história. Ele configurou a sociedade, a política, a economia, o trabalho, o lazer e o próprio homem, devido às transformações geradas com a implantação do modo de produção capitalista.
A ideologia predominante na prática social capitalista supervaloriza o trabalho, pois ele define as identidades e os papéis assumidos na sociedade, sendo o denominador comum das pessoas. Além disso, ele é a possibilidade de manutenção da riqueza e também da produção de excedente para aqueles que detêm o capital.
No histórico conflito travado entre capital e trabalho assalariado, socialmente gerado nas sociedades capitalistas, os protagonistas dessa situação assumem posições antagônicas por terem interesses distintos e contraditórios. Enquanto a classe detentora do capital objetiva, sobretudo, a acumulação de mais riqueza, a manutenção de seus privilégios – dentre os quais o lazer – e a concentração do poder em suas mãos, a classe operária clama, incessantemente, por melhores condições de vida e de trabalho, com salários dignos, distribuição de renda justa, redução da jornada de trabalho, mais segurança na prática de seus ofícios e oportunidade de emprego para todos.
Nesse contexto emerge o lazer, enquanto fenômeno histórico-social intimamente relacionado às questões que envolvem o trabalho e a vida como um todo. Ao contrário do sentido grego de skhole, o lazer da forma como conhecemos hoje foi fruto de reivindicações sociais, resultante da existência de um "tempo de folga" conquistado sobre o trabalho.
Entretanto, nem todo tempo de folga, supostamente "livre" das obrigações, pode ser considerado tempo de lazer, principalmente se assumir como funções básicas a compensação de frustrações, a recuperação de energias para o exercício laboral ou a fuga dos problemas, o que seria apenas uma maneira alienada de contribuir com a manutenção da estrutura social vigente, desprovida de crítica ou reflexão.
Apesar do pessimismo que engendra a obra O trabalho em migalhas, de Georges Friedmann (1983), esse autor nos esclarece que os trabalhadores assalariados buscavam, diante das condições experimentadas em conseqüência do trabalho capitalista alienante, reconquistar no lazer tudo aquilo de que vinham sendo privados: a iniciativa, a responsabilidade, a criatividade e a realização.
Assim sendo, o lazer parece estar restrito à compensação da insatisfação e da alienação causadas pelo trabalho, à recuperação psicossomática do trabalhador e à possibilidade ingênua de realização humana, desvinculada das questões mais amplas que constituem a dinâmica social, como indicam ponderações de Nelson Carvalho Marcellino (1987).
Enquanto prática social vinculada ao moderno mundo do trabalho, o lazer assume como funções básicas, dentre outras, a compensação das frustrações experimentadas, a recuperação de energias exigidas para o exercício laboral, bem como a possibilidade de consumo de bens e serviços. Dessa forma, percebo que essas duas esferas não são opostas, mas complementares: mais uma vez, o lazer se torna "útil" aos interesses – sociais, políticos e econômicos – que permeiam não somente o trabalho, mas a vida como um todo.
Além disso, como a lógica da produtividade foi por nós incorporada, nem sempre estamos preparados para a vivência crítica e criativa do lazer, uma vez que este carrega valores preconceituosos, tais como inutilidade, falta de seriedade, descompromisso, preguiça, vagabundagem. Por essa razão, até mesmo o lazer precisa ser ocupado por atividades brincantes. Freqüentemente, nos sentimos constrangidos se, por opção, nos permitimos gozar desse momento da forma como quisermos, recusando-nos a ser mais uma peça na engrenagem socioeconômica que visa basicamente a produção e o consumo conformista de bens e serviços.
Por outro lado, seguindo a perspectiva gramsciana, Marcellino (1987) destaca a oportunidade de o lazer atuar como alavanca de transformação social, pois é um fenômeno gerado historicamente, do qual podem emergir valores questionadores da sociedade. A admissão da importância do lazer na vida moderna significa, pois, considerá-lo como um espaço privilegiado para a vivência de valores que possam contribuir, enquanto resistência, para mudanças de ordem moral e cultural, imprescindíveis à construção de uma outra realidade social, mais justa e humanizada.
Concluindo, este estudo mostrou que o entendimento de lazer vem sendo, historicamente, atrelado à noção de trabalho, nem sempre assumindo caráter de oposição. Essa relação dialética demanda, pois, repensar os vínculos constituídos entre esses dois fenômenos, pois ambos são importantes para a realização humana.
Considerando o quadro social em que vivemos atualmente, a maioria das pessoas se vê obrigada a preencher seus momentos de lazer com novas jornadas de trabalho, tendo em vista o atendimento de suas necessidades básicas de sobrevivência, ou mesmo a conquista de seus "sonhos de consumo", o que muitas vezes compromete a qualidade de vida que pode ser proporcionada pelo lazer.
A qualidade de vida almejada pelo lazer em seu sentido social, histórico, cultural e político assume, pois, os princípios da qualidade sociocultural, elemento chave na batalha por condições dignas para todos. Assim, o lazer se torna um espaço para a luta contra a exploração e alienação dos sujeitos, procurando desenvolver a consciência reflexiva calcada não somente na realidade concreta, mas também na possibilidade de atuar sobre ela em busca de saídas.
Para tanto, é preciso desenvolver uma educação para (e pelo) lazer que abrace o seu papel multicultural, valorizando o afetivo, a solidariedade e a inter-subjetividade, considerando, ainda, a diversidade cultural e a democratização social na construção de uma educação para todos que enfatize a igualdade mas não elimine as diferenças. Assim, é preciso alargar espaços para os sonhos, para os desafios e para os riscos que suas realizações impõem. E é justamente o repartir da alegria nesse processo que colabora com a formação de sujeitos lúdicos e com o compromisso do lazer com a promoção da qualidade de vida.
BIBLIOGRAFIA
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10.09.10 - MUNDO Em nome de quê?
Frei Betto *
Adital -
Muitos pais, professores e psicólogos se queixam de que parcela considerável da juventude carece de referências morais. Inúmeros jovens mergulham de cabeça na onda neoliberal de relativização de valores. Tornam público o privado (vide YouTube), são indiferentes à política e à religião, praticam sexo como esporte e, em matéria de valores, preferem os do mercado financeiro.
Sou da geração que fez 20 anos de idade na década de 1960. Geração literalmente inovadora (a Bossa era Nova, o Cinema era Novo etc.), que injetava utopia na veia e se pautava por ideologias altruístas. Queríamos apenas mudar o mundo. Derrubar as ditaduras, a fome e miséria, as desigualdades sociais, o imperialismo e o moralismo.
Em nome do mundo sem opressão, que muitos de nós identificávamos com o socialismo, lutamos pela emancipação da mulher, contra o apartheid e em defesa dos povos indígenas. Sobretudo, trouxemos ao centro da roda a questão ecológica.
Já a geração de nossos pais acreditava na indissolubilidade do casamento, na virgindade pré-conjugal como valor, na religião como inspiradora da conduta moral, na prevalência da produção sobre a especulação. Em nome de Deus, as consciências estavam marcadas pelo estigma do pecado.
Todas as gerações têm aspectos positivos e negativos. Se a minha se nutriu de ideologias libertárias, que nela incutiram espírito de sacrifício e solidariedade, a de meus pais acreditou na perene estabilidade das quatro instituições pilares da modernidade: a religião, a família, a escola e o Estado.
Esta geração da primeira metade do século XX não logrou superar o patriarcalismo, o preconceito a quem não lhe era racial e socialmente semelhante, a fé positivista nos benefícios universais da ciência e da tecnologia.
A geração posterior, a da segunda metade do século passado, promoveu a ruptura entre sentimento e sexualidade; idealizou os modelos soviético e chinês de socialismo, com seus gulags e suas "revoluções culturais"; e hoje troca a militância revolucionária pelo direito de ser burguesa sem culpa.
Ora, a crescente autonomia do indivíduo, apregoada pelo neoliberalismo, faz com que muitos jovens se perguntem: em nome de quê devemos aceitar normas morais além das que decido que me convêm? E as adotam convencidos de que elas possuem prazo de validade tão curto quanto o hambúrguer da esquina.
Se a repressão marcou a geração de meus pais e a revolução (política, sexual, religiosa etc.) a de minha juventude, hoje o estímulo à perversão ameaça os jovens. Respira-se uma cultura de desculpabilização, já que, na travessia do rio, se deu as costas à noção de pecado e ainda não se aportou na interiorização da ética. Parafraseando Dostoiévski, é como se Deus não existisse e, portanto, tudo fosse permitido.
Quem é hoje o enunciador coletivo capaz de ditar, com autoridade, o comportamento moral? A Igreja? A católica certamente não, pois pesquisas comprovam que a maioria de seus fiéis, malgrado proibições oficiais, usa preservativo, não valoriza a virgindade pré-matrimonial e frequenta os sacramentos após contrair nova relação conjugal. As evangélicas ainda insistem no moralismo individual, sem olho crítico para o caráter antiético das estruturas sociais e a natureza desumana do capitalismo.
Onde a voz autorizada? O Estado certamente não é, já que pauta suas decisões de acordo com o jogo do poder e o faturamento eleitoral. Hoje ele condena o desmatamento da Amazônia, os transgênicos, o trabalho escravo, e amanhã aprova seja lá o que for para não perder apoio político.
O enunciador coletivo, o Grande Sujeito, existe: é o Mercado. Ele corrompe crianças, no modo de induzi-las ao consumismo precoce; corrompe jovens, no modo de seduzi-los a priorizar como valores a fama, a fortuna e a estética individual; corrompe famílias através da hipnose televisiva que expõe nos lares o entretenimento pornográfico. E para proteger seus interesses, o Mercado reage violentamente quando se pretende impor-lhe limites. Furioso, grita que é censura, é terrorismo, é estatização, é sabotagem!
As futuras gerações haverão de conhecer a barbárie ou a civilização? A neurose da competitividade ou a ética da solidariedade? A globocolonização ou a globalização do respeito e da promoção dos direitos humanos - a dimensão social do amor?
Pais, professores, psicólogos, e todos que se interessam pela juventude, estão desafiados a dar resposta positiva a tais questões.
[Autor de "A mosca azul - reflexão sobre o poder" (Rocco), entre outros livros. www.freibetto.org
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* Escritor e assessor de movimentos sociais